Ficar desempregado é algo ruim,
claro. Mas como tudo na vida, tem seu lado bom. Poucas vezes comecei um texto
com um clichê tão grande, mas o pior é que é verdade. A principal qualidade do
desemprego para uma pessoa de classe média como eu é a oportunidade que ele dá
para que a pessoa consiga se livrar de coisas supérfluas. Perdi coisas
importantes, claro. Confesso que tenho medo às vezes de estar sem plano de saúde
e de não estar contribuindo para a previdência. Mas, em geral, tenho lidado bem
com isso.
Uma coisa que aprendi com o
desemprego é que a classe média da qual faço parte perdeu completamente a
capacidade de discernir o que é necessário e o que é privilégio. “Não dá pra
viver sem plano de saúde”, diz um amigo bancário, mesmo vivendo num país em que
a maioria das pessoas não tem este privilégio. Tanto dá pra viver que a maioria
vive, afinal. A crise começada em 2015 foi a primeira crise de classe média da
nossa história. Quando digo de classe média, refiro-me ao fato de que é a
primeira vez que vivemos um período de crise em que uma boa parte da população
está inserida na classe média, ou seja, em que boa parte da população enxerga a
vida através dos olhos da classe média. Não é à toa que foi ela quem,
majoritariamente, foi às ruas protestar com camisa da seleção pedindo
impeachment em 2015. Como pessoa inserida dentro da classe média posso dizer, é
uma classe composta por pessoas dramáticas. Lembro-me de uma matéria hilária
(neste caso de humor involuntário) da revista Época neste contexto das manifestações do impeachment com o título “Os
dramas da classe média”. Dois depoimentos me marcaram. Um era de um analista de
TI, na foto com cara de muito puto e sofrido, vestindo calça e camisa social,
contando da tristeza de sua família que costumava sair todo sábado para jantar
num restaurante e, devido à crise, começou a ter que dividir uma pizza neste
dia. O outro era de uma mulher, gerente de loja, trajando um vestido longo, com
cara de poucos amigos e braços cruzados, relatando o drama de ter que trocar o
cinema semanal com os filhos pelo Netflix.
Nada é mais fácil do que
converter privilégio em direito e supérfluo em necessidade. Basta, sei lá, um
mês convivendo com o supérfluo e você já acha que não dá pra viver sem aquilo.
Usuários de Uber que o digam, “é muito sofrido pegar ônibus, afinal”. Comigo
não foi diferente. Não tenho plano de saúde e nem contribuo para a previdência.
Mas mantive a TV a cabo. “Não dá pra viver sem”, pensei eu à época. Faz mais ou
menos um mês que minha ficha caiu. “Por que eu ainda tenho esta merda?”, pensei
eu. “Chegou a hora de cancelar”, veio-me à mente logo em seguida. É aí que
aparece a Vivo no texto.
Não há na história do planeta
empresa pior do que a Vivo. Talvez apenas as outras empresas de telefonia. Com
seu serviço ruim e seu atendimento lamentável, a Vivo tem revolucionado o
capitalismo. Talvez num futuro não tão distante vamos estudar o “vivismo” da
mesma forma que estudamos o fordismo e o toyotismo. Ligar para a Vivo por
qualquer motivo é um verdadeiro teste para a paciência. E isto inclui não
apenas reclamações e cancelamentos, mas também a contratação de serviços. A
grande sacada da Vivo foi perceber que ela vende um serviço supérfluo e cada
vez mais desnecessário para um público extremamente disposto a se acostumar com
estas porcarias. A má qualidade do seu serviço faz com que uma grande parte dos
clientes mantenha o serviço não apenas pela necessidade, mas para evitar a dor
de cabeça que o contato traz. Na minha primeira ligação, consegui falar com um
atendente após mais ou menos dez minutos, tendo clicado um sem número de
dígitos “disque um para falar sobre problemas, dois para comprar ... trinta e
cinco para recitar um poema”. Em algum momento, tive que digitar meu CPF para,
em seguida, quando finalmente falei com uma pessoa de verdade, tive que
responder qual meu CPF. Eis que meu cadastro não era encontrado no sistema e a
mulher ficou de me ligar para terminar o cancelamento. Dois dias depois, recebi
uma ligação da Vivo. Era uma outra pessoa me perguntando se eu tinha interesse
em fechar um pacote de 300 milhões de gigas para o meu celular. Disse que não e
perguntei do cancelamento. Outra área da Vivo cuidava disso, respondeu-me a
atendente. Dois dias depois, outra ligação da Vivo. Era um homem, perguntando
se eu tinha interesse em fechar um pacote de 300 milhões de gigas para o meu
celular. Não tenho notícias do meu cancelamento há uma semana. Não sei se ele
foi feito ou não. Ainda não tive forças para me dedicar a resolver isto.
Um supérfluo de classe média ao
qual não me rendi na época em que eu tinha carteira assinada é o celular
pós-pago. A TIM nunca aceitou isto muito bem. Há cada dois ou três dias, alguém
da TIM me liga para dizer que tem uma promoção de um pacote de 300 milhões de
gigas para o meu celular. Apenas uma vez respondi a verdade nestes contatos. Eu
disse que no fundo não queria ter mais um boleto para pagar. Não quero mais uma
conta física chegando em casa. Acho chato. O atendente me respondeu que não
teria problema, pois a TIM poderia mandar a conta por email. Fiquei um cinco
segundos quieto refletindo sobre a conversa e disse que mesmo assim não ia
querer. Dois dias depois, a TIM me ligou de novo.
A grande promessa da TIM nas suas
tentativas de me vender um plano de pós-pago é o acesso ilimitado ao Whatsapp. Após
a eleição, ainda num momento de tensão pós-eleitoral, resolvi sair de todos os
grupos de Whatsapp. Minha vida ficou mais leve por alguns meses. Eles foram
mais do que suficientes para mostrar que grupos de Whatsapp não servem para
nada. Sua grande função é basicamente espalhar boatos, notícias falsas e
estimular a ansiedade. Os grupos de Whatsapp não significam nada de real na
vida das pessoas. Nada. Fui voltando aos poucos este ano. Na semana passada, lá
estava eu vidrado no aplicativo vendo o que os grupos falavam sobre assuntos
diversos. Meu pacote de dados acabou enquanto um grupo mandava vídeos do
ministro da educação falando bosta. Ainda bem que a TIM não me ligou naquela
hora.
A classe média é formada, em
geral, por pessoas infelizes, que utilizam o dinheiro ganho em empregos de merda
para comprar produtos, serviços e experiências supérfluas. A grande paixão da
classe média nos últimos anos, depois do celular, foi sem dúvida nenhuma a
viagem. Esta passou a ser, inclusive, a grande meta das pessoas. Digo por
experiência própria, fui assim aproximadamente entre 2011 e 2015. Onze meses de
trabalho de merda e um mês viajando. Viagens que na maioria das vezes não
representam nada, acabam sendo uma experiência vazia. O que dizer, afinal,
sobre a classe média viajante que ama as bicicletas de Amsterdã e Berlim, mas
que odiaram as ciclovias de Haddad em SP? Pessoas de classe média adoram falar
sobre viagens, sempre citando onde foram. Na maioria das vezes são incapazes de
dizer o que aprenderam.
A grande sustentação para esta
vida de merda é sem dúvida o emprego. É ele que sustenta a Vivo, a TIM, as
viagens, a prestação do carro, o plano de saúde, a escola dos filhos etc. A
perda do emprego significa basicamente perder tudo. A defesa do emprego está
acima de tudo. Se o mercado acha que eleger um cara que, entre outras coisas,
acha que homossexual deve apanhar na rua, que defende a volta da tortura e
representa um grupo de policiais criminosos que formou uma milícia, tudo bem. É
ele quem vai manter o emprego, disse o mercado. Qualquer valor moral e humano é desvalorizado na classe média atual frente ao número de empregos. A ascensão da extrema-direita
no mundo tem muito a ver com a decadência do mundo da classe média, incapaz de
encontrar uma felicidade real nas experiências supérfluas que o consumo lhe
permite, mas também incapaz de enxergar que o problema está nas falsas
necessidades que possui. É este sentimento de frustração que tem alavancado
líderes que conseguem explorar esta frustração e convertê-la em ódio contra
aqueles que se recusam de certa forma a fazer parte deste círculo vicioso
moderno. Trump, Le Pen, Bolsonaro, entre outros, todos bradando contra os “vagabundos”,
todos aqueles que de certa forma não se adequam e questionam esta destruição.
Numa tentativa de sair da bolha, algumas vezes tento conversar com algumas
pessoas que votaram em Bolsonaro para entender sua visão de mundo. Elas estão
ansiosas e continuam infelizes. Continuam putas. Isto não vai passar nunca,
afinal.
É bem provável que eu nunca mais
vá ter carteira assinada. Como dito no começo, lido pessoalmente bem com isso,
mas não é o que acontece com a maioria. De certa forma sinto que consegui uma libertação parcial que a maioria não conseguiu. “O medo dá origem ao mal”, diz a música
de Chico Science. Cada vez mais a classe média tem sido empurrada para a
terceirização, que se tornou basicamente uma política governamental desde a
gestão Temer. A primeira reforma que o mercado julgava necessária era a
trabalhista. Facilitou-se a terceirização, que no longo prazo representará uma
queda gigantesca na receita que financia a previdência, uma vez que a maior
parte das entradas deste sistema vem do trabalho formal. Agora os “jênios”
querem reformar a previdência, afinal, o sistema não se paga. O argumento
principal é a geração de empregos. Emprego é a palavra-chave que mantem a cela
da prisão fechada. Não lembro o nome do filme em que um grupo de veganos se
unia para libertar os bois de uma fazenda. Chegavam lá, cortavam as cercas, mas
nenhum boi fugia. Ficaram parados olhando. “Eles já não sabem viver de outro
jeito”, dizia o personagem principal antes de ir embora. Tiveram que sair
correndo porque, após o susto, os bois começaram a avançar sobre eles. Poucos
dias depois caminharam para o matadouro. É o que a classe média tem feito, basicamente.