sábado, 18 de maio de 2019

A vida real por trás de cada meme e a função da comunicação




A imagem deste post vem de um cartaz que, supostamente, uma jovem levou a uma das passeatas que levaram mais de um milhão de pessoas às ruas contra o “governo” Bolsonaro e seus “projetos” educacionais. O uso das aspas neste caso serve para dar uma ideia do absurdo que é chamar o atual “governo” de governo e um “projeto” de destruição das universidades públicas de projeto. A imagem e o erro de português da garota fez sucesso na rede bolsonarista, sempre expondo a imagem da menina que ergueu o cartaz com o argumento de que os erros de português são suficientes para desqualificar a causa pela qual a garota havia se decidido por lutar.
Por trás de cada meme há uma pessoa de verdade. Uma vida que muitas vezes pode estar sendo simplesmente destruída pela simples vontade que o internauta tem de dar risada e debochar de alguém. Não faço ideia de quem é a jovem que segurava o cartaz, mas é bem possível que ela tenha sido vítima de todo tipo de humilhação nestes últimos dias. Acho bem improvável que alguém que fez parte da divulgação da imagem e que tenha espalhado este meme se importa com isto, principalmente porque neste caso estamos falando de pessoas que fazem parte da base bolsonarista, e definitivamente não dá para esperar nenhum tipo de empatia deste tipo de gente. A criação de memes envolvendo pessoas reais e não públicas, porém, não é exclusividade desta turma com a qual é impossível manter qualquer tipo de diálogo que exija empatia. De certa forma, a internet transformou-nos, basicamente, em seres insensíveis. As pessoas são em geral incapazes ao menos de mexer na foto para impedir que a pessoa seja exposta. Não, o deboche nesta nova era só funciona se houver alguém humilhado, de preferência alguém que já é fraco.
A garota do meme é vítima das enormes falhas educacionais do nosso país. É bem provável que tenha passado por um sistema público pobre e que não incentiva a leitura. Isto, porém, não é exclusividade do setor público. Todos cometem erros de português. Nos textos que escrevo, volta e meia me assusto com os erros que cometo na revisão. E mesmo após a revisão, alguns passam. Nosso ministro da justiça, por exemplo, filho de escolas particulares, universidades públicas e MBAs no exterior, fala “conje” e não sabe a diferença entre rugas e rusgas. O ministro da educação, que estudou na mesma universidade que eu, confundiu Kafta e kafka e escreveu incitar com S. Acontece. A diferença é que eles são pessoas públicas e estão abertas a críticas. A garota não. A rede bolsonarista, aliás, faz vistas grossas para as tosquices do seu ministro da Justiça, mas não tem problema em humilhar a desconhecida humilde. É a covardia à la Danilo Gentilli, aliás.
Nenhuma sociedade é tão escrota quando o assunto é erro gramatical quanto a brasileira. Tenho trabalhado como professor de idiomas e a maior dificuldade que tenho é convencer os alunos a falarem, mesmo que seja “errado”. Se eu te entendi, está certo, digo eu toda vez que sinto esta vergonha. A gramática lapidamos depois. Por aqui, como quase tudo, a linguagem é um tipo de opressão. A principal função da linguagem é a comunicação. O objetivo da comunicação é alcançado quando a pessoa que fala ou escreve é capaz de ser entendida por aquela que escuta ou lê. Do ponto de vista comunicativo, por exemplo, o “trazerá” cumpriu plenamente sua função, uma vez que todos que leram o cartaz compreenderam o que era dito. No Brasil, porém, a linguagem tem como objetivo muitas vezes não a comunicação, mas a demonstração de um possível conhecimento daquele que fala, que deixa claro inclusive que não tem nenhuma preocupação em ser compreendido por quem escuta. Em nenhum local de nossa sociedade isto é tão claro quanto nas sessões do Supremo. Ninguém entende aquilo. Os juízes se esforçam em falar da forma mais incompreensível possível. É isto que lhes garante o poder. Forma-se desta forma um grupo de intermediários cuja função é traduzir aquilo que o juiz disse para a linguagem da massa. Este intermediário ganha o poder de um tradutor, divide  o domínio com o juiz.
A educação universitária no Brasil foi desenhada como um privilégio para poucos. “Formar uma elite” era o slogan da USP em sua fundação. A situação começou a mudar nos anos 2000, e não apenas graças ao trabalho do PT no governo federal. Houve uma espécie de consenso na nossa classe política de que era necessário dar um gigantesco passo que atraísse pessoas de baixa renda e origem humilde para as universidades. Para citar duas ações não petistas que mostram isto, podemos citar a criação da USP Leste pelo PSDB em SP e a implantação da política de cotas, que deve seu pioneirismo à gestão de Anthony Garotinho no RJ (sabe lá Deus de que partido ele era nessa época, acho que PDT ou PMDB ou PP ou PR, sei lá). O fato é que havia um consenso coroado com as medidas do governo federal, que expandiu o número de vagas, de cursos, construiu novas universidades e expandiu o programa de cotas cariocas para o restante do país. Investindo não apenas no público, o governo federal petista expandiu a rede de financiamentos para estudantes de baixa renda que conseguissem vagas apenas em instituições privadas. O conceito de universidade, que era exclusivo, passou a ser inclusivo. A sociedade de certa forma entendeu que era necessário que a universidade abrisse suas portas para todos. E é exatamente isto que incomoda Bolsonaro e sua trupe de memes.
Neste último mês, o atual governo declarou guerra à educação e a questão desta guerra não é apenas o corte de gastos, mas a falta de respeito. Bolsonaro faz tudo que pode para desrespeitar os trabalhadores da educação. E é muito importante notar que o ódio que Bolsonaro e seu séquito têm da educação não se restringe ao setor público. Abraham Weintraub, ministro da Educação, já chamou o FIES de tragédia. Ter um ministro da educação que se diz “liberal”, mas que critica um programa de incentivo ao ingresso de jovens de baixa renda em universidades privadas mostra bem o tipo de capitalista que temos.
A eleição de Bolsonaro é fruto, a meu ver, principalmente da falta de memória e consideração que a nossa sociedade demonstrou com os avanços que tivemos na última década. Chama-se de “velha política” tudo, sem levar-se em conta que no período da “velha política” melhoramos todos os nossos dados sociais, aumentamos significativamente a expectativa de vida, crescemos distribuindo renda e colocamos jovens nas universidades. É óbvio que a situação é ruim ainda, mas melhoramos muito. Saia um pouco da sua bolha, leitor, e pergunte às pessoas mais jovens quantas gerações anteriores a ela tiveram acesso à universidade. É bem provável que a resposta seja “sou a primeira pessoa da minha família”. Veio a “nova política” que quer destruir tudo isto. A menina do cartaz quer impedir isto.
A função da educação é, ou deveria ser, combater opressões e incluir. Na linguagem, isto significa que é quem fala que tem que fazer o possível para ser entendido por quem escuto. Se for necessário, corte o plural, coma os Rs, não importa. Isto não é errar, é acertar. O que mais me entristece na situação é, além da humilhação a que a menina foi exposta por algo que ela é vítima, o fato de que as pessoas são incapazes de reconhecer que ela está defendendo o certo. Foda-se a forma, o que importa é o conteúdo. Para a garota, se pudesse falar com ela, falaria do orgulho que senti ao ver jovens como ela saindo às ruas para lutar pela educação e para combater o governo psicopata eleito pelas pessoas mais velhas. E diria a ela que não se importe com pessoas escrotas. Todo mundo entendeu o que você disse. Isto é o mais importante. Você é uma heroína.

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