A imagem deste post vem de um
cartaz que, supostamente, uma jovem levou a uma das passeatas que levaram mais
de um milhão de pessoas às ruas contra o “governo” Bolsonaro e seus “projetos”
educacionais. O uso das aspas neste caso serve para dar uma ideia do absurdo
que é chamar o atual “governo” de governo e um “projeto” de destruição das
universidades públicas de projeto. A imagem e o erro de português da garota fez
sucesso na rede bolsonarista, sempre expondo a imagem da menina que ergueu o
cartaz com o argumento de que os erros de português são suficientes para
desqualificar a causa pela qual a garota havia se decidido por lutar.
Por trás de cada meme há uma
pessoa de verdade. Uma vida que muitas vezes pode estar sendo simplesmente
destruída pela simples vontade que o internauta tem de dar risada e debochar de
alguém. Não faço ideia de quem é a jovem que segurava o cartaz, mas é bem
possível que ela tenha sido vítima de todo tipo de humilhação nestes últimos
dias. Acho bem improvável que alguém que fez parte da divulgação da imagem e
que tenha espalhado este meme se importa com isto, principalmente porque neste
caso estamos falando de pessoas que fazem parte da base bolsonarista, e
definitivamente não dá para esperar nenhum tipo de empatia deste tipo de gente.
A criação de memes envolvendo pessoas reais e não públicas, porém, não é
exclusividade desta turma com a qual é impossível manter qualquer tipo de
diálogo que exija empatia. De certa forma, a internet transformou-nos,
basicamente, em seres insensíveis. As pessoas são em geral incapazes ao menos
de mexer na foto para impedir que a pessoa seja exposta. Não, o deboche nesta
nova era só funciona se houver alguém humilhado, de preferência alguém que já é
fraco.
A garota do meme é vítima das
enormes falhas educacionais do nosso país. É bem provável que tenha passado por
um sistema público pobre e que não incentiva a leitura. Isto, porém, não é
exclusividade do setor público. Todos cometem erros de português. Nos textos
que escrevo, volta e meia me assusto com os erros que cometo na revisão. E
mesmo após a revisão, alguns passam. Nosso ministro da justiça, por exemplo,
filho de escolas particulares, universidades públicas e MBAs no exterior, fala “conje”
e não sabe a diferença entre rugas e rusgas. O ministro da educação, que
estudou na mesma universidade que eu, confundiu Kafta e kafka e escreveu
incitar com S. Acontece. A diferença é que eles são pessoas públicas e estão
abertas a críticas. A garota não. A rede bolsonarista, aliás, faz vistas
grossas para as tosquices do seu ministro da Justiça, mas não tem problema em
humilhar a desconhecida humilde. É a covardia à la Danilo Gentilli, aliás.
Nenhuma sociedade é tão escrota
quando o assunto é erro gramatical quanto a brasileira. Tenho trabalhado como
professor de idiomas e a maior dificuldade que tenho é convencer os alunos a
falarem, mesmo que seja “errado”. Se eu te entendi, está certo, digo eu toda
vez que sinto esta vergonha. A gramática lapidamos depois. Por aqui, como quase
tudo, a linguagem é um tipo de opressão. A principal função da linguagem é a
comunicação. O objetivo da comunicação é alcançado quando a pessoa que fala ou
escreve é capaz de ser entendida por aquela que escuta ou lê. Do ponto de vista
comunicativo, por exemplo, o “trazerá” cumpriu plenamente sua função, uma vez
que todos que leram o cartaz compreenderam o que era dito. No Brasil, porém, a
linguagem tem como objetivo muitas vezes não a comunicação, mas a demonstração
de um possível conhecimento daquele que fala, que deixa claro inclusive que não
tem nenhuma preocupação em ser compreendido por quem escuta. Em nenhum local de
nossa sociedade isto é tão claro quanto nas sessões do Supremo. Ninguém entende
aquilo. Os juízes se esforçam em falar da forma mais incompreensível possível.
É isto que lhes garante o poder. Forma-se desta forma um grupo de
intermediários cuja função é traduzir aquilo que o juiz disse para a linguagem
da massa. Este intermediário ganha o poder de um tradutor, divide o domínio com o juiz.
A educação universitária no
Brasil foi desenhada como um privilégio para poucos. “Formar uma elite” era o
slogan da USP em sua fundação. A situação começou a mudar nos anos 2000, e não
apenas graças ao trabalho do PT no governo federal. Houve uma espécie de consenso
na nossa classe política de que era necessário dar um gigantesco passo que
atraísse pessoas de baixa renda e origem humilde para as universidades. Para
citar duas ações não petistas que mostram isto, podemos citar a criação da USP
Leste pelo PSDB em SP e a implantação da política de cotas, que deve seu
pioneirismo à gestão de Anthony Garotinho no RJ (sabe lá Deus de que partido
ele era nessa época, acho que PDT ou PMDB ou PP ou PR, sei lá). O fato é que
havia um consenso coroado com as medidas do governo federal, que expandiu o
número de vagas, de cursos, construiu novas universidades e expandiu o programa
de cotas cariocas para o restante do país. Investindo não apenas no público, o
governo federal petista expandiu a rede de financiamentos para estudantes de
baixa renda que conseguissem vagas apenas em instituições privadas. O conceito
de universidade, que era exclusivo, passou a ser inclusivo. A sociedade de
certa forma entendeu que era necessário que a universidade abrisse suas portas
para todos. E é exatamente isto que incomoda Bolsonaro e sua trupe de memes.
Neste último mês, o atual governo
declarou guerra à educação e a questão desta guerra não é apenas o corte de
gastos, mas a falta de respeito. Bolsonaro faz tudo que pode para desrespeitar
os trabalhadores da educação. E é muito importante notar que o ódio que
Bolsonaro e seu séquito têm da educação não se restringe ao setor público.
Abraham Weintraub, ministro da Educação, já chamou o FIES de tragédia. Ter um
ministro da educação que se diz “liberal”, mas que critica um programa de
incentivo ao ingresso de jovens de baixa renda em universidades privadas mostra
bem o tipo de capitalista que temos.
A eleição de Bolsonaro é fruto, a
meu ver, principalmente da falta de memória e consideração que a nossa
sociedade demonstrou com os avanços que tivemos na última década. Chama-se de “velha
política” tudo, sem levar-se em conta que no período da “velha política”
melhoramos todos os nossos dados sociais, aumentamos significativamente a
expectativa de vida, crescemos distribuindo renda e colocamos jovens nas
universidades. É óbvio que a situação é ruim ainda, mas melhoramos muito. Saia
um pouco da sua bolha, leitor, e pergunte às pessoas mais jovens quantas
gerações anteriores a ela tiveram acesso à universidade. É bem provável que a
resposta seja “sou a primeira pessoa da minha família”. Veio a “nova política”
que quer destruir tudo isto. A menina do cartaz quer impedir isto.
A função da educação é, ou
deveria ser, combater opressões e incluir. Na linguagem, isto significa que é
quem fala que tem que fazer o possível para ser entendido por quem escuto. Se
for necessário, corte o plural, coma os Rs, não importa. Isto não é errar, é
acertar. O que mais me entristece na situação é, além da humilhação a que a
menina foi exposta por algo que ela é vítima, o fato de que as pessoas são
incapazes de reconhecer que ela está defendendo o certo. Foda-se a forma, o que
importa é o conteúdo. Para a garota, se pudesse falar com ela, falaria do
orgulho que senti ao ver jovens como ela saindo às ruas para lutar pela
educação e para combater o governo psicopata eleito pelas pessoas mais velhas.
E diria a ela que não se importe com pessoas escrotas. Todo mundo entendeu o
que você disse. Isto é o mais importante. Você é uma heroína.
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