sábado, 4 de maio de 2019

Bolsonaro, as universidades e o pensamento




Tenho a opinião pessoal de que o atual presidente Jair Bolsonaro é uma pessoa que não possui nenhuma qualidade. Não há nada nele que, na minha visão de mundo, seja digno de algum elogio. Ficou provado no ano passado, porém, que a maioria do país não concorda comigo, afinal ele foi eleito com 55% dos votos e uma parcela da população realmente o chama de “mito”.           Qualidade é sem dúvida nenhuma um conceito subjetivo. O que é uma qualidade para mim pode não ser para outra pessoa. Com este objetivo, conversei nesta semana com alguns eleitores do capitão com os quais a vida me impede de simplesmente cortar relações e tentei descobrir qual a qualidade que eles viram nesta pessoa e que eu, com a minha visão de mundo, sou incapaz de enxergar. Sem dúvida nenhuma, a principal “qualidade” que estes eleitores viram em Bolsonaro, a principal característica do presidente com a qual eles se identificam, é a ignorância.
Não me lembro se eram treze ou catorze candidatos na eleição presidencial do ano passado. O que me lembro é que claramente Bolsonaro era o único que não apresentava conhecimento algum sobre nenhum assunto. Pelo contrário, fazia questão de expor e até de se orgulhar sobre sua mais completa ausência de sabedoria em todas as áreas imagináveis. Bolsonaro nunca produziu e deixa claro que é incapaz de produzir algo em qualquer área. Seja produzir um prego ou escrever um texto com começo, meio e fim. É sem dúvida esta a característica que mais atraiu o eleitorado brasileiro para esta candidatura. Aconteceu uma identificação de uma massa incapaz de pensar e que apresentava uma relação de rancor com qualquer tipo de conhecimento. É por isso que esta parcela da população não apenas silencia, mas no fundo aprova as ações contra as universidades que o governo liderado pelo capitão adotou na última semana. É a vingança contra os “arrogantes” detentores dos saberes que o eleitorado de Bolsonaro tanto menospreza.
Um governo como o de Bolsonaro só funciona em situações em que a maioria da população se mostra incapaz de pensar. A mente humana vive em eterno conflito entre o pensamento e o instinto. Somos animais, temos um instinto que muitas vezes nos leva à destruição, e a função do pensamento, da racionalidade, é de certa forma controlar estes instintos em nome do bem-estar geral. É por isso que este governo está sempre apelando aos instintos da massa que controla e combatendo aqueles que pensam e podem gerar a reflexão sobre os absurdos que acontecem. Todo governo autoritário se apega a símbolos e outras bobagens que estimulam o instinto. É a bandeira subindo, o hino tocando, a caneta de um real sendo usada para assinar o termo de posse. O nacionalismo é um dos alicerces da mediocridade e encontra seu ápice na guerra. Na mesma semana em que anunciou cortes contra as universidades formadoras do saber e do pensamento, o governo Bolsonaro aumento o tom de ameaça de invasão contra a Venezuela. Nada mais simbólico.
O processo de destruição do pensamento no Brasil vive um apogeu desde a Lava-Jato. Todo mundo é contra corrupção, afinal.  Foi apelando aos instintos que a Operação pôde várias vezes enfrentar a Constituição, que nada mais é do que um documento racional tentando controlar instintos e desejos de vingança. Há dois exemplos disso envolvendo Sérgio Cabral, ex-governador do RJ. Cabral é um merda, isto é claro para todos. Por isso pessoas como ele são tão importantes para regimes autoritários incentivarem o sentimento de vingança e se mostrarem como únicos capazes de atender a sanha revanchista da massa. Num depoimento ao juiz Marcelo Bretas, Cabral foi questionado se não deveria se preocupar com as origens do dinheiro que usava para comprar joias para sua esposa. O ex-governador respondeu que não e contrapôs dizendo que o exemplo era a esposa do juiz Bretas, vendedora de joias, que vendia seus produtos a Cabral sem perguntar qual a origem do dinheiro. Isto foi o suficiente para Bretas ordenar que Cabral fosse colocado em solitária e transferido de cadeia, ficando longe da família. A mídia fez festa. Cenas de Cabral sendo arrastado até a solitária, discutindo com guardas e sofrendo outros tipos de humilhação fizeram a festa da galera. “Bem-feito”, dizia a jornalista com cara de revoltada. Uma sociedade pensante, porém, acharia estranho o fato de que a esposa do juiz que julga o réu era fornecedora deste. Mais do que isto, beneficiou-se do esquema de corrupção que agora o juiz julga. Um segundo exemplo vem de uma delação em que Cabral foi acusado de receber propina do grupo dono da concessão das empresas de transporte municipal da cidade do RJ a cada vez que acontecia um aumento de passagem. Mais revolta. “Até nisso, ele roubava”. Cabral, porém, era governador e quem decide o preço da passagem de ônibus no munícipio é o prefeito. Como Cabral teria interferido num assunto que não é de seu domínio?
É o pensamento que permite que uma sociedade diferencie justiça de vingança. É o pensamento também que permite que enxerguemos a diferença entre um crime individual e um crime cometido por um agente de força pública, que usa esta força em nosso nome. É o pensamento que é capaz de nos levar a um sentimento de revolta quando vemos o número de assassinatos cometidos por agentes do Estado explodir no Rio de Janeiro e em São Paulo. E é por isso que Bolsonaro e sua turma tanto o enxergam como o principal inimigo a ser combatido. É o pensamento que permite que enxerguemos coisas que parecem óbvias, como a parcialidade de um juiz que prende o principal candidato à presidência e recebe como prêmio por esta prisão um cargo de ministro do antigo segundo colocado que se tornou vencedor.
Poucas coisas são mais simbólicas do período que vivemos quanto uma discussão via twitter acontecida na mesma semana em que o governo anunciou os cortes às universidades entre o jornalista Augusto Nunes, porta-voz extra-oficial do bolsonarismo na rádio Jovem Pan, e Guilherme Boulos. Boulos, diz o jornalista, “nunca trabalhou na vida”. Boulos é professor universitário desde os 23 anos. exerce esta profissão há mais de 15 anos. Nunes sabe disso. Mas ser professor, no seu conceito de mundo, não é algo que deva ser classificado como trabalho. O professor gera conhecimento e pensamento, coisas que no mundo bolsonarista para nada servem. Só atrapalham.
A classe média nas grandes cidades é extremamente ignorante e preguiçosa para tudo que envolva pensamento. Não é à toa que o mercado de livros no Brasil sofreu uma grande queda nas vendas no ano passado. Somos um país de pessoas que “não têm tempo de ler”. A base do domínio se dá através desta classe. Bolsonaro de certa forma libertou estas pessoas. Por muito tempo, elas tinham vergonha da própria ignorância. O jogo mudou. A ignorância, a partir de Bolsonaro, tornou-se motivo de orgulho e elas podem tranquilamente bradar contra aqueles que têm conhecimento.
Não há preconceito que resista ao pensamento. Todo preconceituoso está preso ao preconceito e o pensamento liberta. Bolsonaro é inimigo, por exemplo, dos profissionais de história. Porque olhar para o passado nos faz pensar. O Brasil está preso. Bolsonaro nada mais é do que o carcereiro-mor que controlará está grande prisão enquanto a maioria for incapaz de pensar. Seu sucesso depende da destruição do pensamento. Os sábios são inimigos, apresentados como “improdutivos”. E isto não é a “cortina de fumaça”. É a prioridade do governo. Bolsonaro não resiste a cinco minutos de reflexão. Impedir esta reflexão de acontecer é a chave para o capitão e sua turma conseguirem se sustentar no poder por um longo período. Convencer as pessoas a pensar é a chave para vencer este período nebuloso. Como? Não sei bem. É difícil convencer alguém que não pensa há muito tempo a pensar. O Brasil perdeu essa prática.

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