sexta-feira, 24 de maio de 2019

Mentindo no currículo



Há poucas atividades no mundo que eu ache tão chatas quanto elaborar um currículo. Percebi isto logo na primeira vez em que fui fazê-lo. Inscrevi-me para uma vaga de instrutor de crianças num cursinho voltado para a colônia coreana no bairro do Bom Retiro. Sem saber ao certo o que escrever, procurei à época algum site que me falasse o que escrever. Na época ainda não existia o Youtube, hoje devem ter milhões de tutoriais sobre o assunto. Deve ser até profissão. Mas bom, segui a dica e coloquei meu nome, endereço, estado civil, número de filhos etc. Estas eram as respostas que eu sabia ao menos dar. Em todas as outras, inventei e enrolei. Sempre fui uma negação quando o assunto é informática. Sou da última geração em que apenas crianças ricas tinham computador e acesso à rede. Comecei a usar computador já na adolescência e meus conhecimentos se baseavam basicamente em passar tempo nas salas de bate-papo do Uol ou no ICQ tentando matar o tédio. Internet avançado, escrevi eu no currículo. Já sobre o Word, eu havia feito alguns trabalhinhos de escola e minha irmã me havia ensinado a alinhar a página. Word avançado, portanto. Eu já sabia abrir o Excel. Não sabia, porém, importar um arquivo de Excel. Não sabia clicar em arquivo, abrir etc. Fui aprender isto no trabalho e lembro que anotei num papel para não esquecer o passo-a-passo. Mas já sabia que se eu escrevesse numa célula =2+2 apareceria o número 4. Ou seja, Excel avançado. Descobri que era muito importante para quem estava começando na época ter conhecimentos em Access. Eu até hoje não sei o que o Access faz. Access intermediário é o que pus no meu currículo. O único programa que na época eu dominava era o Paint, mas já não davam muito valor para ele na época. Nada consta sobre este meu conhecimento no meu primeiro currículo. Eu já tinha um bom conhecimento de inglês na época, sempre foi algo que me interessou. Conseguia ler um livro de dificuldade média em inglês. Inglês intermediário. Por que escrevi só intermediário? Por que igualei meu conhecimento de inglês ao conhecimento de Access, programa que eu nem sabia (e sigo sem saber) para que serve? Talvez o ser humano tenha uma característica de supervalorizar o que não sabe e desvalorizar o que sabe. Ao menos eu tenho. Não vou mentir na única coisa em que podia dizer a verdade, afinal. Aí veio a parte mais bizarra, a dos adjetivos. Descrevi-me como dinâmico, proativo, cativante. Eu era um pós-adolescente extremamente molenga e medroso na verdade. Quando comecei a trabalhar em escritório, descobri que male mal conseguia atender um telefone. No ápice da tosquice, eu disse que “vestia a camisa da empresa”. Como eu podia saber isso se era meu primeiro emprego, afinal? Do mesmo jeito que pus que sabia Access. O site dizia que eu deveria no fim dizer quais eram meus objetivos e como via meu futuro na empresa. A realidade é que eu queria uma grana pra ajudar em casa e comprar camisetas de time de futebol (com meu primeiro salário comprei uma camisa do Boca). Eu disse que me identificava com os valores da empresa e queria começar lá. O que é exatamente se identificar com os valores de uma empresa é algo que até hoje não sei. Trabalhei, por exemplo, numa editora que tinha como valor pintado na parede a defesa da liberdade de expressão, mas que controlava o que funcionários postavam em redes sociais. Disse também que almejava um crescimento na empresa que, lembrando, nada mais fazia do que contratar jovens para dar aulas de reforço a jovens coreanos no Bom Retiro.
Surpreendentemente passei na vaga e trabalhei apenas por um mês na escola. Foi uma experiência extremamente enriquecedora pois, entre outras coisas, eu tinha que dar aula de história do Brasil a alunos que não sabia falar português ou inglês. Entrei em novembro, em dezembro vieram as férias e em fevereiro o dono fechou aa escola e abriu um restaurante no local. Por um tempo, achei que o meu sucesso no processo seletivo era fruto do meu currículo e dos meus “conhecimentos” de Access. Só depois caiu a ficha de que provavelmente eu devo ter sido a única pessoa que se candidatou para a vaga.
O Access me acompanhou no currículo até 2010. Foi meu companheiro de luta em inúmeras rejeições e em algumas aprovações. Ele sempre estava lá comigo em cada uma das dinâmicas de grupo insuportáveis que tive que enfrentar em busca de um estágio. O mundo deu voltas e um belo dia eu passei a ser a pessoa que contratava. Ao analisar currículos, eu sempre gostava de ver qual era o conhecimento que a pessoa tinha de Access.
A forma como elaboramos currículos não deixa de representar bem a maneira como enxergamos a vida. Uma experiência de cinco anos muitas vezes resumida a uma linha. “2003-2008 – Faculdade de economia”. Muitas coisas aconteceram nestes cinco anos. Experiências que realmente mudaram a minha vida. Mas o que importa no currículo é este grande vazio “2003-2008 – Faculdade de economia”. Trabalhei por doze anos no mesmo local e uma quantidade tremenda de experiências vivi naquele ambiente. Chorei, ri, briguei, fiz as pazes, conheci pessoas, despedi-me de pessoas, fiz merda, consertei algumas, mandei pessoas tomar no cu, pessoas me mandaram tomar no cu, uma quantidade de coisas que não conseguimos às vezes nem expressar, basicamente desenvolvi a minha vida. “2005-2017 – Editora X – área de compras”. O currículo não se preocupa com o caminho, apenas com o final. Um resumo tosco de algo que não pode ser resumido.
Na minha experiência com currículos conclui que, na maior parte das vezes, quanto mais picareta a pessoa, maior a probabilidade do currículo dela se destacar. Pessoas vazias têm uma capacidade maior de expressão através de um instrumento vazio. Recebia currículos que eram verdadeiras obras-primas da picaretagem. Jovens ricos contando sobre intercâmbios ao Canadá aos dezesseis anos onde puderam “lidar com as diferenças”. Nada como jovens ricos e cheios de privilégios saindo do Brasil, um dos locais mais heterogêneos e complexos do mundo, para ir para um país rico “lidar com diferenças”. Cada um tem seu Access, afinal.
O Access do governador Witzel é uma pós-graduação em Harvard. Do mesmo jeito que eu inventava que sabia usar o Access, Witzel inventou que fez uma pós-graduação em Harvard. Ao ser pego na mentira, Witzel inventou uma resposta que nem o jovem João no ápice da picaretagem seria capaz de inventar: “Eu pretendia fazer o curso”. Esta resposta mostra ainda mais o tamanho do vazio pessoal de Witzel. Há tantas coisas melhores para se pretender na vida, afinal. Na mesma semana, o procurador da Lava-Jato Deltan Dallagnol apagou de seu Twitter a referência que fazia a uma pós-graduação na mesma universidade. O ministro da Justiça, Sérgio Moro, diz ter feito um curso na mesma universidade, mesmo tendo um nível de inglês macarrônico. A turma da Lava-Jato enxerga o mundo da mesma forma, afinal. Eles pretendem a mesma coisa.
Um dos ramos educacionais que mais cresce no Brasil é o de MBA picaretas de escolas privadas. Cursos curtos, que pouco ou nada ensinam, voltados para profissionais ricos, com preguiça de estudar de verdade, mas que querem colocar o nome de uma instituição renomada no currículo. Pessoas que não se importam em ter uma experiência enriquecedora e que baseiam a vida em preencher mais uma linha deste famigerado documento. “MBA em Marketing com foco em Gestão de Novos Projetos”. As universidades estrangeiras renomadas perceberam o enorme mercado que existe para isto por aqui e investem pesado. Profissionais picaretas de classe média alta de países em desenvolvimento são o público-alvo destes cursos. Brasil, Rússia, Índia e China lotam os cursos de MBA de Harvard, do MIT, de Yale e de outras universidades americanas e britânicas.
Inventar que fez Harvard é o menor dos erros de Witzel e na grande mentira que ele representa. Isto não é nada comparado com o uso do extermínio como política de Estado e com o silêncio geral que a sociedade está fazendo frente aos crimes de sua gestão no Rio. Mas faz sentido sem dúvida que uma pessoa que não respeita a vida dos outros seja incapaz de reconhecer que a real importância de uma experiência está na sua vivência, e não na sua conclusão. Foda-se Harvard. Foda-se o Access. Foda-se o currículo. A vida vale mais a pena quando o foco são as experiências que não podem ser colocadas neste documento.

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