Há poucas atividades no mundo que
eu ache tão chatas quanto elaborar um currículo. Percebi isto logo na primeira
vez em que fui fazê-lo. Inscrevi-me para uma vaga de instrutor de crianças num
cursinho voltado para a colônia coreana no bairro do Bom Retiro. Sem saber ao
certo o que escrever, procurei à época algum site que me falasse o que
escrever. Na época ainda não existia o Youtube, hoje devem ter milhões de
tutoriais sobre o assunto. Deve ser até profissão. Mas bom, segui a dica e
coloquei meu nome, endereço, estado civil, número de filhos etc. Estas eram as
respostas que eu sabia ao menos dar. Em todas as outras, inventei e enrolei.
Sempre fui uma negação quando o assunto é informática. Sou da última geração em
que apenas crianças ricas tinham computador e acesso à rede. Comecei a usar
computador já na adolescência e meus conhecimentos se baseavam basicamente em
passar tempo nas salas de bate-papo do Uol ou no ICQ tentando matar o tédio.
Internet avançado, escrevi eu no currículo. Já sobre o Word, eu havia feito
alguns trabalhinhos de escola e minha irmã me havia ensinado a alinhar a
página. Word avançado, portanto. Eu já sabia abrir o Excel. Não sabia, porém,
importar um arquivo de Excel. Não sabia clicar em arquivo, abrir etc. Fui
aprender isto no trabalho e lembro que anotei num papel para não esquecer o
passo-a-passo. Mas já sabia que se eu escrevesse numa célula =2+2 apareceria o
número 4. Ou seja, Excel avançado. Descobri que era muito importante para quem
estava começando na época ter conhecimentos em Access. Eu até hoje não sei o
que o Access faz. Access intermediário é o que pus no meu currículo. O único
programa que na época eu dominava era o Paint, mas já não davam muito valor para
ele na época. Nada consta sobre este meu conhecimento no meu primeiro
currículo. Eu já tinha um bom conhecimento de inglês na época, sempre foi algo
que me interessou. Conseguia ler um livro de dificuldade média em inglês.
Inglês intermediário. Por que escrevi só intermediário? Por que igualei meu
conhecimento de inglês ao conhecimento de Access, programa que eu nem sabia (e
sigo sem saber) para que serve? Talvez o ser humano tenha uma característica de
supervalorizar o que não sabe e desvalorizar o que sabe. Ao menos eu tenho. Não
vou mentir na única coisa em que podia dizer a verdade, afinal. Aí veio a parte
mais bizarra, a dos adjetivos. Descrevi-me como dinâmico, proativo, cativante.
Eu era um pós-adolescente extremamente molenga e medroso na verdade. Quando
comecei a trabalhar em escritório, descobri que male mal conseguia atender um
telefone. No ápice da tosquice, eu disse que “vestia a camisa da empresa”. Como
eu podia saber isso se era meu primeiro emprego, afinal? Do mesmo jeito que pus
que sabia Access. O site dizia que eu deveria no fim dizer quais eram meus
objetivos e como via meu futuro na empresa. A realidade é que eu queria uma
grana pra ajudar em casa e comprar camisetas de time de futebol (com meu
primeiro salário comprei uma camisa do Boca). Eu disse que me identificava com
os valores da empresa e queria começar lá. O que é exatamente se identificar
com os valores de uma empresa é algo que até hoje não sei. Trabalhei, por
exemplo, numa editora que tinha como valor pintado na parede a defesa da liberdade
de expressão, mas que controlava o que funcionários postavam em redes sociais.
Disse também que almejava um crescimento na empresa que, lembrando, nada mais
fazia do que contratar jovens para dar aulas de reforço a jovens coreanos no
Bom Retiro.
Surpreendentemente passei na vaga
e trabalhei apenas por um mês na escola. Foi uma experiência extremamente enriquecedora
pois, entre outras coisas, eu tinha que dar aula de história do Brasil a alunos
que não sabia falar português ou inglês. Entrei em novembro, em dezembro vieram
as férias e em fevereiro o dono fechou aa escola e abriu um restaurante no
local. Por um tempo, achei que o meu sucesso no processo seletivo era fruto do
meu currículo e dos meus “conhecimentos” de Access. Só depois caiu a ficha de
que provavelmente eu devo ter sido a única pessoa que se candidatou para a
vaga.
O Access me acompanhou no
currículo até 2010. Foi meu companheiro de luta em inúmeras rejeições e em
algumas aprovações. Ele sempre estava lá comigo em cada uma das dinâmicas de
grupo insuportáveis que tive que enfrentar em busca de um estágio. O mundo deu
voltas e um belo dia eu passei a ser a pessoa que contratava. Ao analisar
currículos, eu sempre gostava de ver qual era o conhecimento que a pessoa tinha
de Access.
A forma como elaboramos
currículos não deixa de representar bem a maneira como enxergamos a vida. Uma
experiência de cinco anos muitas vezes resumida a uma linha. “2003-2008 –
Faculdade de economia”. Muitas coisas aconteceram nestes cinco anos. Experiências
que realmente mudaram a minha vida. Mas o que importa no currículo é este
grande vazio “2003-2008 – Faculdade de economia”. Trabalhei por doze anos no
mesmo local e uma quantidade tremenda de experiências vivi naquele ambiente.
Chorei, ri, briguei, fiz as pazes, conheci pessoas, despedi-me de pessoas, fiz
merda, consertei algumas, mandei pessoas tomar no cu, pessoas me mandaram tomar
no cu, uma quantidade de coisas que não conseguimos às vezes nem expressar,
basicamente desenvolvi a minha vida. “2005-2017 – Editora X – área de compras”.
O currículo não se preocupa com o caminho, apenas com o final. Um resumo tosco
de algo que não pode ser resumido.
Na minha experiência com currículos
conclui que, na maior parte das vezes, quanto mais picareta a pessoa, maior a
probabilidade do currículo dela se destacar. Pessoas vazias têm uma capacidade
maior de expressão através de um instrumento vazio. Recebia currículos que eram
verdadeiras obras-primas da picaretagem. Jovens ricos contando sobre
intercâmbios ao Canadá aos dezesseis anos onde puderam “lidar com as diferenças”.
Nada como jovens ricos e cheios de privilégios saindo do Brasil, um dos locais
mais heterogêneos e complexos do mundo, para ir para um país rico “lidar com
diferenças”. Cada um tem seu Access, afinal.
O Access do governador Witzel é
uma pós-graduação em Harvard. Do mesmo jeito que eu inventava que sabia usar o
Access, Witzel inventou que fez uma pós-graduação em Harvard. Ao ser pego na
mentira, Witzel inventou uma resposta que nem o jovem João no ápice da
picaretagem seria capaz de inventar: “Eu pretendia fazer o curso”. Esta
resposta mostra ainda mais o tamanho do vazio pessoal de Witzel. Há tantas
coisas melhores para se pretender na vida, afinal. Na mesma semana, o procurador
da Lava-Jato Deltan Dallagnol apagou de seu Twitter a referência que fazia a
uma pós-graduação na mesma universidade. O ministro da Justiça, Sérgio Moro,
diz ter feito um curso na mesma universidade, mesmo tendo um nível de inglês
macarrônico. A turma da Lava-Jato enxerga o mundo da mesma forma, afinal. Eles
pretendem a mesma coisa.
Um dos ramos educacionais que
mais cresce no Brasil é o de MBA picaretas de escolas privadas. Cursos curtos,
que pouco ou nada ensinam, voltados para profissionais ricos, com preguiça de
estudar de verdade, mas que querem colocar o nome de uma instituição renomada
no currículo. Pessoas que não se importam em ter uma experiência enriquecedora
e que baseiam a vida em preencher mais uma linha deste famigerado documento. “MBA
em Marketing com foco em Gestão de Novos Projetos”. As universidades
estrangeiras renomadas perceberam o enorme mercado que existe para isto por
aqui e investem pesado. Profissionais picaretas de classe média alta de países
em desenvolvimento são o público-alvo destes cursos. Brasil, Rússia, Índia e
China lotam os cursos de MBA de Harvard, do MIT, de Yale e de outras
universidades americanas e britânicas.
Inventar que fez Harvard é o
menor dos erros de Witzel e na grande mentira que ele representa. Isto não é nada comparado com o uso do extermínio
como política de Estado e com o silêncio geral que a sociedade está fazendo
frente aos crimes de sua gestão no Rio. Mas faz sentido sem dúvida que uma
pessoa que não respeita a vida dos outros seja incapaz de reconhecer que a real
importância de uma experiência está na sua vivência, e não na sua conclusão. Foda-se
Harvard. Foda-se o Access. Foda-se o currículo. A vida vale mais a pena quando
o foco são as experiências que não podem ser colocadas neste documento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário