Eu perdi o emprego no cada vez
mais longínquo ano de 2017. Com muito tempo livre, senti que era hora de
colocar em prática o que estava aprendendo no curso de pós-graduação de
Ciências Políticas que fazia na época. Resolvi que era hora de participar das sessões
abertas de debate da Câmara dos Vereadores de São Paulo e o tema da primeira
sessão marcada era a privatização do Autódromo de Interlagos. Sou uma pessoa
que não tem opinião formada sobre o assunto privatização. O motivo é simples,
para mim se trata de um assunto que não existe. Não faz sentido uma pessoa se
dizer a favor ou contra privatizações sem que ela saiba o quê estão querendo
privatizar. O impacto social da privatização do Parque do Ibirapuera é
totalmente diferente do impacto social da privatização do Sambódromo, por
exemplo. A grande farsa do debate geral é que ele cria a ideia de que alguém
deve ser a favor da privatização de tudo ou contra privatizar tudo, esvaziando
o debate.
Disposto a contribuir e com
tempo, estudei um pouco o assunto para a sessão. Descobri, por exemplo, que em
2017, dos vinte autódromos que recebiam corridas da Fórmula 1, dezessete eram
públicos. As exceções eram o autódromo dos EUA, que pertence a um milionário do
petróleo texano, o autódromo de Suzuka, que pertence a Honda, e mais um que não
me lembro. A Fórmula 1, devido aos gigantescos custos que exige, tornou-se
basicamente uma categoria “estatal”. É por isso que cada vez mais surgem na
categoria corridas em países sem tradição no esporte que usam o evento para divulgar
o local, quase como um projeto estatal. Bahrein, Turquia, Rússia, Malásia,
Azerbaijão, Emirados Árabes, entre outros. Uma semana antes da sessão, o então
prefeito João Doria foi a Abu Dhabi para divulgar seus projetos de privatização
na cidade e foi passear no autódromo da cidade, que, segundo ele, era o grande
modelo a ser seguido na privatização de Interlagos. Estudando o assunto, fiquei
surpreso ao descobrir que o autódromo de Abu Dhabi é 100% público e dá um
prejuízo gigantesco para o país. O motivo é simples, ele não foi feito para ter
lucro, trata-se de um meio para gerar publicidade. Doria, portanto, quis usar
como exemplo um autódromo que representa o oposto daquilo que ele dizia querer.
Digo dizia porquê no fundo ele não queria nada. O único objetivo de Doria na
prefeitura era autopromoção que o levasse a cargos mais altos, e ele foi
bem-sucedido em seu projeto pessoal.
Sou contra a privatização de
Interlagos, mas também sou contra a manutenção do autódromo como ele é hoje.
Acho que faria muito mais sentido socialmente transformar aquela região em
parque aberto ao público. Apenas minha opinião pessoal e que pode e deve ser
debatida. Interlagos, sem a Fórmula 1, tem resultado financeiro positivo,
basicamente com o aluguel do local para milionários que querem brincar de
corrida aos fins de semana ou com eventos como o Lollapalooza. O que dá
prejuízo ao autódromo é exatamente a Fórmula 1. Segundo especialistas, porém, o
prejuízo gerado ao autódromo pela Fórmula 1 é mais do que bancado pelo lucro
que o evento gera ao setor de turismo da cidade. A corrida é o maior evento
turístico da cidade no que se refere a dinheiro gasto (perde para a Parada Gay
em número absoluto de turistas). O verdadeiro debate sobre este assunto deveria
ser se a cidade está disposta a bancar esta espécie de subsídio ao setor de
turismo da cidade, o que acho um debate válido, aliás.
Pois bem, chegando preparado à
sessão, sentei-me e esperei. Com uma hora e meia de atraso, chegou o vereador
Milton Leite, presidente da Casa e escolhido por Doria para defender o projeto
no debate. Se colocarmos a quantidade de asneiras sobre o assunto que Milton
Leite disse naquele dia num papel, teríamos um livro maior do que Guerra e Paz. O vereador não se deu ao
trabalho de estudar por cinco minutos o assunto. Disse, entre outras coisas,
que se o autódromo não fosse privatizado a cidade perderia a Fórmula 1 e que TODAS,
repito, TODAS as corridas atualmente acontecem em circuitos privados. Pura e
simples mentira. Disse também que a própria Fórmula 1 estava investindo e se
mostrava interessada em comprar o autódromo. A Fórmula 1, porém, nunca
demonstrou nenhum interesse em adquirir nenhum autódromo no mundo. Por último,
respondendo a uma pergunta minha, Milton Leite que o principal atrativo para o
possível comprador de Interlagos era a construção de um hotel dentro do
circuito. Qual a chance, diga-me leitor e leitora, de alguém vir pra São Paulo
e se hospedar no meio do autódromo de Interlagos?
Dois anos depois, sem
estardalhaço, o processo de privatização do autódromo foi suspenso. O motivo é
simples, ninguém se interessou em comprar. A “brilhante” ideia de construir um
hotel no meio do autódromo não atraiu procura. Não apenas este, mas por
enquanto quase nenhum dos projetos de privatização alardeados por Doria em sua
campanha saiu do papel. Fruto em parte da incapacidade de Doria em fazer
qualquer coisa, em outra parte do fato de que ele e sua turma se esqueceram de
procurar saber se alguém queria comprar o que ele queria vender. Doria foi
passear na China, nos Emirados Árabes, fez um tour no mundo e nada. Durante a
campanha para prefeito, o ápice da maluquice de Doria neste assunto foi sem
dúvida a “ideia” de privatizar as ciclovias da cidade. Seria uma coisa inédita
no planeta privatizar uma faixa das ruas da cidade. Também não achou quem
comprasse, possivelmente.
Na mesma semana em que a
privatização do autódromo de Interlagos foi suspensa, o presidente Jair
Bolsonaro e o governador do Rio, Wilson Witzel, conseguiram superar Doria
quando o assunto é ideia esdrúxula. Antes de falar sobre a questão do autódromo
do Rio, é importante notar que há vários conflitos se desenhando dentro da
extrema-direita brasileira. Hoje ela é liderada por Bolsonaro, o maluco-mor,
mas há várias guerrinhas sendo armadas dentro desta turma. Uma delas é entre
Witzel e Doria, ambos dispostos a tentar substituir o maluco-mor na presidência
algum dia. É isto que explica, por exemplo, a exposição psicopática que Witzel
e Doria estão realizando das mortes relacionadas a ações policiais nos dois
estados. Eles estão numa corrida para ver quem mata mais, saciando o desejo de
uma sociedade psicopata representada pelo maluco-mor e que teve um ápice no
bizarro vídeo de Witzel voando de helicóptero numa região pobre do Rio
apontando uma metralhadora. Na maluquice em que vivemos, Witzel é hoje um dos
representantes da ala judiciária dos lunáticos da Lava-Jato, enquanto Doria
tenta se destacar como maluco de “centro”, o tipo de maluco que viaja o mundo
defendendo o livre mercado enquanto saí matando internamente. Por trás do
autódromo do Rio, há Witzel querendo chamar a atenção nacional e passar a perna
em Doria.
A grande lição da gestão Doria em
SP é que se deve fazer uma grande festa no anúncio de obras irrealizáveis.
Ninguém vai lembrar quando não der certo. O fracasso do processo de
privatização de Interlagos teve espaço quase nulo na mídia e Doria já pôde
aproveitar os benefícios políticos do projeto que não aconteceu. A mesma coisa
acontece agora com o autódromo do Rio. A quantidade de absurdos do projeto é
inumerável e o anúncio de construção do autódromo poderia estar no roteiro de
um filme surreal de Buñuel. Num primeiro momento, Bolsonaro diz que o autódromo
será construído num terreno do Exército e será todo bancado pela iniciativa
privada, “com custo zero para os cofres públicos”. A primeira questão básica é,
se o terreno é público, logo há um custo na doação deste terreno, certo? É algo
público que deixará de ser público por um valor de zero reais, logo???? A segunda
parte é quem exatamente na iniciativa privada vai bancar o projeto? As mesmas
empresas interessadas nos projetos de Doria em SP? Bolsonaro e Witzel
anunciaram um custo de de R$ 850 milhões para o projeto. Quem calculou este valor?
Uma vez que ainda não há interessados, quem achou este valor? Diz Bolsonaro
ainda que o tempo de construção do autódromo é de oito meses e que ele já será
usado na corrida do Brasil em 2020. Fora a impossibilidade de construção de um
autódromo num prazo tão curto, a Fórmula 1 tem contrato com SP até 2020. Quem pagará
a multa pela mudança no local da corrida? A Fórmula 1 aceitará correr sem
testes num autódromo novo?
O autódromo do Rio provavelmente
não sairá. Se sair, será de uma forma totalmente diferente da anunciada pelo
maluco-mor e pelo juiz psicopata. Para eles, isto não importa. Ninguém se lembrará
deste assunto daqui a alguns meses. O maluco e o psicopata já conseguiram o
espaço que queriam. Aprenderam com Doria a manipular uma população sem memória
e que não presta atenção em nada. Para dar apenas um exemplo, a Reforma
Trabalhista geraria milhões de empregos. Não gerou. Agora é a Reforma da
Previdência que gerará milhões de empregos. Não se dão nem ao trabalho de mudar
de argumento. O futuro destes empregos gerados pelas Reformas é o mesmo do
autódromo de Bolsonaro e Witzel e das privatizações de Doria...
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