A cena do jovem Ronaldo jogando no
Cruzeiro aos 17 anos dá lugar ao consagrado e bem-sucedido Ronaldo comprando o
seu clube de origem 27 anos depois é comovente. Exemplo de como o mundo dá
voltas. E eu confesso que sempre me comovo com essas histórias de gente que sai
da pobreza e prospera. A história é tão linda, mas tão linda, que praticamente
nos impede de ver que nada neste lance de Ronaldo comprar o Cruzeiro faz
sentido.
Ronaldo pagou R$ 400 milhões por 90%
do Cruzeiro. Pagou para quem? Esta é apenas a primeira pergunta sem resposta. Uma
semana antes desta venda do sujeito indeterminado para Ronaldo, o Cruzeiro
havia sido transformado em SAF, Sociedade Anônima do Futebol. Que porra é essa?
Até pesquisei. Quem quiser a explicação técnica, é só dar um Google. Mas no
fundo não passa de mais um dos muitos trambiques de gente rica querendo evitar
imposto. O Cruzeiro passou a ser um Cruzeiro SAF e alguns dias depois foi
vendido para Ronaldo por estes R$ 400 milhões. Ninguém tem muito interesse em
saber quem vendeu. O dono da XP participou da negociação (se é que ela houve) e
ficou animado com o negócio, disse que ele é apenas o primeiro e já disse que o
Botafogo será o próximo time a ser transformado em SAF. Como ele sabe disso? Por
que exatamente a XP está participando disto? Ninguém sabe.
Ronaldo tem, segundo o Deus-Google,
uma fortuna estimada em R$ 800 milhões. Grana que para mim parece ser algo
infinito. Gastou metade desta fortuna para comprar 90% da Cruzeiro SAF. Se isto
é muito ou não, não sei. Há alguns sonhos que não tem preço, não sei o quanto
comprar o clube que o revelou representa para Ronaldo. Os R$ 400 milhões que
sobraram continuam sendo grana infinita. Não é aí que a conta não fecha, mas
sim no que vem depois. Ronaldo usou para comprar a Cruzeiro SAF uma empresa sua
sediada na Espanha chamada Tara Sports, que possui um patrimônio declarado de
R$ 120 milhões. Como que uma empresa de R$ 120 milhões compra uma outra de R$
400 milhões? Mais do que isto, Ronaldo assumiu com a Cruzeiro SAF uma dívida de
R$ 1 bilhão que ele deve pagar em 10 anos. Como uma pessoa que tem agora R$ 400
milhões vai pagar R$ 1 bilhão em 10 anos? É muito dinheiro infinito em contas
que não fecham. A XP entende disto.
A compra do Cruzeiro por Ronaldo foi o assunto
da semana, quase sem nenhum tipo de questionamento. Inventou-se até um carinho
especial de Ronaldo pelo clube mineiro. Não lembro de já ter visto alguma
declaração carinhosa de Ronaldo em relação ao time que o revelou. Nunca o vi
num jogo do Cruzeiro e acho que as únicas vezes que ele voltou a Belo Horizonte
na vida foram em jogos da seleção em que ele jogou e no 7x1 que ele comentou
pela Globo. Clube ter dono é a nova ideia de modernidade. O grande exemplo é o
futebol inglês, tão amado pelos comentaristas de TV a cabo. Os clubes ingleses,
porém, não existem para dar lucro. Pelo contrário, eles querem é gastar. Boa
parte dos clubes ingleses têm como proprietários mafiosos bilionários jogando
dinheiro fora ou lavando dinheiro. Gente que gasta os R$ 400 milhões de Ronaldo
em uma festa. O Chelsea pertence ao milionário russo Roman Abramovich, que
enriqueceu com negócios ilícitos com o governo russo, comprando a preço de banana
empresas que eram públicas no fim da URSS e fugiu da Rússia quando descobriram
as mutretas. Sua fortuna é de R$ 60 bilhões. É infinito elevado a infinito. O
Manchester City pertence a um membro da família real dos Emirados Árabes
Unidos, este com R$ 130 bilhões. Infinito elevado a infinito vezes dois mais
dez. O Leicester é um clube mais tranquilo, pertence a uma família tailandesa
que controla lojas de duty-frees com fortuna de R$ 30 bilhões. Infinito
dividido por dois. É gente que basicamente quer brincar, torrar e lavar
dinheiro, ficar famoso e ganhar cidadania europeia. O Reino Unido concede
cidadania a qualquer estrangeiro que chegue disposto a investir R$ 8 milhões no
país. Quando chega um mafioso destes, concede cidadania e título de nobreza.
Esta maluquice se expandiu para
outros países. O Atlético de Madri basicamente pertence ao governo do Azerbaijão.
O PSG pertence a grupos ligados à monarquia do Qatar. Outros clubes optaram por
um caminho diferente, vendendo ações na Bolsa de Valores. Manchester United,
Liverpool e Borussia Dortmund são três exemplos. Este último, quando ia para
uma partida pelas quartas-de-final da Copa dos Campeões de 2017, foi vítima de
um ataque terrorista. O ônibus com seus jogadores foi atacado e as ações do clube
despencaram naquela tarde. No dia seguinte, o autor do ataque foi encontrado.
Era um russo que havia vendido ações do clube no dia anterior e queria recomprá-las
a um preço menor após o atentado.
O torcedor brasileiro ainda é meio
refratário à ideia de clube ter dono. Digo ainda pois não me parece ser nada
que uma boa campanha de marketing não mude. Jornalistas chamando isto de
modernidade é o primeiro passo. Colocar figuras como Ronaldo como proprietário
é outra. Ganha mais simpatia do que se o clube fosse comprado por algum destes
picaretas do mercado financeiro. Pelo cara da XP, por exemplo, que
aparentemente está liderando o saldão de clubes. É possível que nos próximos
meses vejamos, sei lá, o Jairzinho comprando o Botafogo, o Renato Gaúcho
comprando o Grêmio, Neymar comprando o Santos etc. A conta não vai fechar. Mas
não importa se esta conta não fecha. Estes caras são só a embalagem. O sonho é ver futebol negociado na Bolsa de Valores. Imagine ver o Flamengo administrado como o Vale? O que vai ser quando a decisão do título brasileiro significar valorização ou desvalorização na Bolsa? Ou que uma zebra signifique gente ganhando ou perdendo muito de uma hora para a outra? Na cabeça desta turma, o mundo funciona desta forma.
A lógica da transformação de clubes
em empresas é a mesma das privatizações. Você precariza, paga muita gente para
fazer publicidade negativa, depois apresenta esta operação como única solução. A
resposta para o que está acontecendo não está nos 90% de Ronaldo. Está nos 10%
dos outros. Os 10% da turma da XP.