domingo, 15 de dezembro de 2019

A Faria Lima e a vida de merda




A literatura é repleta de obras que conseguem de maneira perfeita refletir a imagem de uma determinada época. São obras que eu costumo dizer que se tornaram verdadeiros documentos. Minha Vida de Menina de Helena Morley (pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant) é uma desta obras. O livro é tão bom que às vezes até dá vontade de chorar por saber que algo assim existe. A autora tinha entre 13 e 15 anos quando escreveu este diário que, mais do que falar sobre a própria vida, consegue ser um retrato do Brasil do final do séc. XIX. A decadência das cidades mineiras, o racismo, a situação dos negros no momento pós-abolição, a falta de valor dado ao trabalho manual (a forma como sua família acredita que trabalhar é algo feio, ao mesmo tempo que um conhecido que mora numa cidade maior diz que por lá é o inverso), a religiosidade, está tudo lá, contado de uma forma ao mesmo tempo rica e inocente, sem arranjos mais intelectualizados e rimas ricas, numa linguagem completamente acessível. Uma criança questionando a realidade dura construída pelos adultos e à qual ela também estaria presa pelo resto da vida. O cinema brasileiro também consegue fazer isto às vezes. Dois Filhos de Francisco usa a história da dupla Zezé di Camargo e Luciano como mote para contar algo geral, a história de milhões de brasileiros que realizaram o êxodo rural nos anos 1950 e 1960. A cena dos Camargo chegando na grande capital e indo morar num barraco sem nenhuma condição, mas ao mesmo tempo fascinados com a eletricidade e brincando de acender e apagar a luz é de um simbolismo profundo. Assim como a famosa cena da piscina da personagem de Regina Casé em Que Horas Ela Volta, ela consegue ter representação social. Se na primeira é a saída do campo para a cidade, na segunda é a libertação da empregada doméstica que naturalizava a opressão que sofria. Anos de histórias de multidões conseguem ser resumidos de forma sublime em poucos segundos.
Na nossa história, a arte que mais conseguiu ter estes momentos é a música. Desde Noel Rosa com Papo de Botequim e Adoniran Barbosa com Despejo na Favela e Saudosa Maloca, chegando a Racionais MCs nos anos 1990 e ao funk ostentação dos anos 2000 e 2010. Nenhum movimento cultural do Brasil deste século conseguiu ser tão representativo quanto o funk ostentação. Suas músicas são verdadeiros documentos. Todas as coisas boas e ruins do governo Lula estão lá. As pessoas felizes porque estão podendo consumir. Mas felizes só por isso. Vida Loka de MC Rodolfinho é sem dúvida a música da década.
Nesta última semana tivemos uma reportagem que consegue de forma incrível criar este tipo de documento. A reportagem da revista Veja sobre os “Faria Limers” deveria ser leitura obrigatória em escolas e universidades. Está tudo lá. O Brasil que criou Bolsonaro, a elie desconectada da realidade, a bolha, a desigualdade, a alienação, o stress, a infelicidade, o alcoolismo, as tentativas de fuga, o machismo, a homofobia, tudo está lá.
O empresário cristão que votou em Bolsonaro “por causa de Paulo Guedes”. Preconceito, autoritarismo e violência travestidos de uma suposta racionalidade econômica. O investidor da bolsa que se orgulha de trabalhar 20 horas e de ter insônia porque só pensa em trabalho e não tem tempo para a esposa. A mulher homossexual que teve que se adaptar ao ambiente homofóbico para prosseguir e que não vê nada de errado nisso, aceitando o papel de oprimida aceita que se torna argumento do opressor. A falta de negros nos ambientes de trabalho tratada com naturalidade. Os ambientes “descolados” e caros, frequentados por pessoas “diferenciadas”. As táticas de Google e Facebook para destruir qualquer possibilidade de vida pessoal de seus funcionários, presos a um ambiente de trabalho “divertido”, em que não receber tíquete é visto como algo bom e em que alimentos são levados até os funcionários para que eles não tenham que sair do local de trabalho mesmo na hora do almoço. A prisão moderna e voluntária. A empresária que diz que “dinheiro é liberdade”, ao mesmo tempo em que não enxerga que está totalmente presa a um estilo de vida vazio graças a este pensamento. A outra empresária que teve que pedir a um estagiário que apresentasse seu trabalho, pois os homens com que trabalha não estavam dispostos a ouvi-la. E com a mesma justificativa da homossexual vítima de homofobia, de que o caminho é a adaptação e não a contestação. Os escapismos. A infelicidade com o trabalho e a tentativa de encaixar outras atividades para não ter que pensar no assunto. A academia, a ioga, a bebedeira nos happy hours ou as viagens milionárias para qualquer lugar longe durante as férias. Tudo isto sem esquecer o trabalho, se der para aproveitar estes momentos para fazer um “contato”, melhor. Não há mais vida pessoal desligada da profissional, todos os conhecimentos e decisões são pensadas tendo um foco profissional, o conceito de amizade perdendo espaço para a ideia de que contato. Um simples passeio passa a ter como foco “fazer contatos”. Tudo vale para se manter na vida de merda guiada por um estilo de vida dominado por um trabalho alienante e infeliz. A vida num escritório, na frente de um computador e de uma planilha de excell ou de uma apresentação de Power Point é a causa maior da infelicidade, mas é justificada pois é ela que gera o salário que permitirá o consumo de bens e serviços que visam a diminuir a infelicidade causada por este trabalho. A terapia, a academia de dois mil reais, a cerveja artesanal no bar descolado, a roupa cara que permite julgar e ser julgado. O trânsito de merda. Está tudo lá. Só faltou a história do grupo de empresários viciados em prostituição e fascinados com o “poder” da compra do sexo, mas aí já seria pesado demais.
As pessoas bem sucedidas e suas vidas de merda. Todo um ciclo criado para que estas pessoas enxerguem a vida de merda como algo normal ou sinônimo de sucesso. Todas as pessoas da matéria, ao mesmo tempo em que deixam claro que são estressadas, dormem pouco e são deprimidas, fazem o possível para fingir que não sabem disso e acham o estilo demais. E a reportagem deixa isto claro.
Ao contrário do que a maioria das pessoas da minha bolha pensam, eu não acho que os eleitores de Jair Bolsonaro estejam arrependidos de seus votos. Quase todos as pessoas que votaram em Bolsonaro têm vidas de merda. E coloquei este “quase” porque juro que não estou radical. São pessoas que em geral estão infelizes e querem que tudo se foda. Pessoas com vidas de merda se chocam ao ver outros que fogem do ciclo merdal. A principal promessa de Bolsonaro foi expandir a vida de merda. Fazer com que ela chegue ao maior número de pessoas possível. O Faria Limer pode até fingir que “votou em Paulo Guedes”. Mas adora ver a merda se espalhando. Bolsonaro está entregando o que prometeu. E o Faria Limer segue indo para a ioga na segunda, para o Outback na terça, para a academia na quarta, para o puteiro na quinta e enchendo a cara nas sextas de happy hour. Leia a matéria. Está tudo lá.       

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

O Ano 1




No dia 9/12 aconteceu no Congresso um evento chamado de “Faça Sempre a Coisa Certa”, tendo como principal estrela o ministro da Justiça Sérgio Moro. O evento foi um daqueles grandes nadas que pessoas poderosas realizam às vezes para preencher o tempo e fazer propaganda pessoal. Completamente irrelevante. Mesmo assim, o tal evento mereceu uma reportagem de mais de dez minutos no Jornal Nacional. As falas de Moro eram sempre precedidas das de um jornalista de voz grossa e confiável, que explicava o que você deveria entender da fala do ministro. “Moro voltou a criticar o Supremo pela decisão de rever a possibilidade de prisão em segunda instância, que segundo o ministro aumenta a possibilidade de impunidade”, para em seguida vir Moro e dizer basicamente a mesma coisa. Nenhuma pessoa do Supremo com opinião distinta apareceu para apresentar um contraponto e rebater o ministro. A opinião era dada como verdade absoluta. Na mesma semana em que Moro ganhou dez minutos de exposição num evento que não significa nada, o ministro tentou utilizar seu cargo para impedir a perda de mandato de uma senadora próxima a ele, a “Moro de saias” e posou para uma foto com um busto dele feito com balas feito pelo lobby da indústria das armas. As duas notícias tiveram espaço mínimo na mesma emissora que dedicou dez minutos ao evento que não significava nada.
A Lava Jato em seu projeto de poder soube muito bem utilizar a mídia. Utilizou três meios em três plataformas diferentes como cúmplices. A TV Globo na mídia televisiva, a revista Isto É na mídia impressa e o site O Antagonista na internet. A Globo e a Isto É eram usadas para vazamentos mais bombásticos e que exigissem reação imediata, enquanto O Antagonista era usado para as “notícias” mais circenses e menores, para a destruição do dia a dia e para manter os lavajatistas lunáticos entretidos. Foi na Globo que Moro vazou as já clássicas conversas telefônicas com Lula, sempre seguindo a lógica da voz grossa e masculina dizendo antes o que o espectador deveria entender do que veria. “Neste áudio, Dilma diz a Lula que entregará nomeação de ministério para protegê-lo de possível prisão”, disse a voz de Bonner enquanto uma versão do áudio fazia parecer isto. Neste ano, um documento da Vaza Jato mostrou que Moro havia editado aquele áudio, escondendo os momentos em que ficava provada que a tese não era verdadeira. O Jornal Nacional preferiu não noticiar este fato, assim como as demais revelações da Vaza Jato. Alegou-se que o material de Greenwald fora obtido por “meios irregulares”.
A Isto É é uma revista irrelevante. Ainda não fechou as portas graças a compras de publicidade do governo de SP. Não é à toa que o governador de SP, João Doria Jr., recebe todo ano o prêmio de “Brasileiro do Ano” da revista. Foi na Isto É que Moro vazou a delação premiada de Delcídio Amaral, às vésperas da maior manifestação pelo impeachment. Um fundo preto, a cara de Delcídio e uma manchete do tipo “Lula e Dilma sabiam de tudo”. Foi provavelmente uma das últimas vezes em que uma edição da Isto É deu lucro, com movimentos empresarias e de governos à época oposicionistas comprando edições para distribuição. Dois anos depois, a bombástica delação de Delcídio não seria aceita pela Justiça por falta de provas. Não houve nenhuma retratação da Isto É. Mas seria indiferente se houvesse, uma vez que ninguém mais lê a revista.
O Antagonista sim é relevante. O site se tornou uma espécie de “porto seguro” da extrema-direita. O radicalismo realmente confia neste site. Em entrevista à revista Piauí no meio do ano passado, o futuro vice-presidente Hamilton Mourão disse que era o único meio de imprensa em que confiava. O site se tornou uma espécie de porta-voz oficial de Moro na imprensa. A Vaza Jato liberou documentos que comprovam isto. Para negá-los, Moro soltou uma nota oficial no site do Antagonista. Se  aa função da Globo é cobrir os eventos insignificantes, cabe ao Antagonista fazer o trabalho sujo. Chamar Greenwald de Verdevaldo, convocar campanhas de ameaças ao Supremo, humilhar Lula, soltar ameaças disfarçadas de notícia. Foi através deste site que Moro espalhou boatos de prisão contra o jornalista que o acusava. O principal acionista do Antagonista é a Empiricus, grupo de investimento que alcançou fama neste ano com a infame propaganda de Betina. Trata-se de um dos muitos grupos que se especializam na realização de pirâmides no sistema financeiro brasileiro, algo que dará muita merda num futuro não tão distante. Uma das principais denúncias da Vaza Jato é que Moro e Dallagnol utilizavam empresas de fachada de palestras, comandadas por suas esposas (ou “conjes”) para lavar dinheiro e ameaçar denunciados. Empresas que topassem financiar palestras dos dois e de outros membros da Lava Jato seriam poupadas nas acusações. O setor bancário é o maior cliente das palestras dos dois. Foi poupado da Lava Jato, mesmo que seja impossível imaginar que todo o dinheiro envolvido na corrupção circularia sem a participação destas instituições.
Moro chegou ao governo aclamado. Menos de uma semana antes da eleição foi anunciado como ministro da Justiça. Paulo Guedes e Hamilton Mourão já disseram publicamente que o convite a Moro já havia sido realizado antes do processo eleitoral, ficando claro que Moro já sabia que ganharia um emprego de Bolsonaro quando liberou informações sigilosas que comprometiam a candidatura de seu rival, Fernando Haddad. Alguns meses depois, os processos liberados contra Haddad foram arquivados por falta de prova. Moro foi tratado como especialista no assunto Justiça e Segurança Pública, mesmo que não tenha nenhuma contribuição realmente relevante ao assunto.
Sua primeira medida como ministro foi assinar o decreto das armas, cujo objetivo era facilitar a posse de armas. Seu comprometimento com a causa bélica levou o lobby das armas a presenteá-lo com a “bela” homenagem nesta semana. Ainda no começo do governo, Moro apresentou o “Pacote Anticrime”, a mais clara tentativa de legitimação de práticas fascistas apresentada neste governo. O Pacote de Moro previa, entre outras coisas, a liberação da violência policial, garantindo a impunidade ao policial que cometesse abusos e alegasse “forte emoção”, o tal do excludente de ilicitude, o quase fim das restrições ao uso de prisões preventivas e do habeas corpus. Nem a ditadura foi tão longe. O Congresso conseguiu barrar os maiores absurdos, mas Moro não vai desistir. Conta com os amigos da imprensa para isto. Moro é também o “cão de guarda” de Bolsonaro. Aparelhou a PF de forma a ameaçar inimigos do presidente. Uma semana depois da briga do presidente com seu ex-partido, a PF invadiu a casa do presidente do PSL numa investigação sobre candidatos laranjas. Também ameaçou publicamente o porteiro que teria falado com Bolsonaro no dia da morte de Marielle Franco e tenta federalizar a investigação para proteger membros da família do presidente, que aparentemente podem estar envolvidos no crime.
Moro subiu na vida explorando o ódio a Lula e aos políticos. Ninguém se importou muito quando Moro e sua turma destruíram o devido processo legal no “combate à corrupção”. Afinal, é “normal” que o juiz converse foram dos autos com o promotor. Se usou Lula e os políticos para o primeiro passo, tenta usar o Supremo para o segundo. A prisão em Segunda Instância é tão importante porque permite que Moro e o baixo clero do Judiciário condenem sem passar pelo crivo do Supremo. Eles têm o poder de mandar prender e soltar. Inventaram alguns slogans para defender este tema, como “a segunda instância garante a impunidade” ou “a segunda instância é um privilégio”. Não importa que dados comprovem exatamente o contrário. A maior parte das pessoas que têm penas revistas em última instância é pobre e a maior parte dos recursos que chegam ao Supremo vem da Defensoria Pública. Estas pessoas são a maioria. Mas não há dado que sobreviva a um bom slogan e a uma mídia comprometida. Simplesmente não há apresentação de dados quando o assunto é este. O que há é Moro repetindo falsos sensos comuns. Não há espaço para opinião daqueles que são contra a prisão em Segunda Instância, que são tratados como demônios. Gilmar Mendes, principal voz do nosso judiciário atual quando o assunto é humanização da lei, é tratado como vilão por ser a figura que solta pessoas. Justiça passou a ser vista como punição e liberdade como impunidade. Não há uma semana em que Moro não faça alguma acusação ao Supremo. Neste ano, inclusive, o ministro inflou e elogiou manifestações que pediam seu fechamento.
Moro é inimigo das regras e do estado democrático de direito porque ele o atrapalha. Numa das conversas da Vaza Jato, Dallagnol propõe a criação de um monumento à Lava Jato em que uma figura masculina representando a justiça derruba dois pilares representando Executivo e Legislativo. O único que ficaria de pé é o Judiciário. Mas Moro quer derrubar o Judiciário também.
O segredo está nos detalhes. Nenhuma pessoa soube usar tão bem os moralismos para ambição pessoal como Moro. A Lei da Ficha Limpa veio assim. A população entrou de cabeça no projeto que deu ao baixo clero do Judiciário o direito de decidir quem pode ou não concorrer numa eleição. A delação premiada a mesma coisa. A sociedade aplaudiu quando este mesmo baixo clero ganhou um instrumento de tortura que garantiu veracidade a roteiros já pré-estabelecidos e a condenações já decididas antes da existência de um processo. Este, aliás, tornou-se um mero detalhe, uma burocracia. No projeto anticrime aprovado, mesmo que sem os maiores absurdos propostos por Moro, há um item preocupante. Não há mais possibilidade de recursos em liberdade para pessoas presas por crimes hediondos. Não há como ser contra isto, não é? Pois bem, é fato que o próximo passo do ministro será a qualificação de corrupção como crime hediondo.
Moro é o maior risco à nossa democracia. É mais perigoso do que Bolsonaro. Toda sua ascensão se fez à base da destruição do estado democrático de direito. Moro legitimou na justiça a ideia de ausência de direito pleno à defesa e de imparcialidade do juiz. “Não falo com condenados”, disse ele numa entrevista mesmo tendo uma profissão, juiz, que basicamente o obriga a falar com condenados. Sim, um juiz deve ouvir de forma imparcial também o condenado. Transformou a delação premiada em instrumento de tortura. Todo o seu primeiro ano no ministério repetiu no governo suas táticas na magistratura. Qualquer boa ação sua, verdadeira ou não, é hiperpropagandeada, enquanto suas ações ruins ficam debaixo dos panos. Moro chegou ao poder mentindo e manipulando. É um criminoso. Não teria razão para mudar agora. O ano 2 será ainda pior.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

A Vale, o Flamengo e a Polícia Militar de SP




Em 25/01/2019 rompeu a barragem da mineradora Vale na cidade de Brumadinho. Entre mortos e desaparecidos, computam-se 393 pessoas. A Vale sabia do risco de rompimento da barragem de Brumadinho desde 2017, mas nada vez. Calculou riscos e decidiu que era financeiramente mais vantajoso arriscar do que parar a produção e arrumar os problemas da barragem. As 393 pessoas já tinham as vidas precificadas. Assim que ocorreu o acidente, uma das primeiras preocupações do ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, e do governador de MG, Romeu Zema, ambos do Partido Novo, foi defender a Vale e dizer que seria muito custoso para a região a interrupção das operações da empresa. As ações da Vale sofreram forte queda no instante do acidente, chegando a um valor de R$ 41,59. No momento em que este texto é escrito, um pouco mais de dez meses após a tragédia, as ações da Vale valem R$ 50,71. Quem apostou na Vale logo após a tragédia teve uma rentabilidade de aproximadamente 25%. Até o momento, a Vale gastou R$ 1,6 bilhão em indenizações e despesas com a tragédia. Neste valor não está incluso o dinheiro gasto em publicidade para melhorar a imagem da empresa. O lucro líquido da Vale em 2018 foi de R$ 26,65 bilhões. Até o momento, as 393 vidas custaram 6% do lucro de um ano da empresa. Nenhuma pessoa da Vale foi responsabilizada criminalmente até o momento pela tragédia.
Em 08/02/2019 ocorreu o incêndio no Centro de Treinamento do Flamengo no Rio de Janeiro, que resultou na morte de 10 jovens das categorias de base. O acidente ocorreu num alojamento provisório. Improvisaram-se containers e um curto circuito num ar condicionado sem manutenção causou a tragédia. Colocar crianças em containers era uma opção mais barata do que coloca-las em hotéis, por exemplo. Até o momento, não houve acerto de indenização para as famílias das vítimas. O valor oferecido pelo clube foi de R$ 400 mil a cada família mais um salário mínimo por mês pelos próximos dez anos. O Flamengo propôs pagar aproximadamente um pouco mais de R$ 5 milhões como indenização pela tragédia, proposta não aceita pelas famílias. O Flamengo gastou em 2019 mais de R$ 200 milhões em contratações. Apenas na contratação de Arrascaeta pagou R$ 80 milhões. A economia na indenização das famílias dos mortos no container coincide com a gastança no time de futebol profissional. Dentro de campo, o Flamengo que colocou jovens para dormirem em containers improvisados ganhou tudo. Venceu o Brasileiro depois de dez anos e a Libertadores depois de 38. “O Flamengo é um exemplo de gestão”, diz o comentarista animado. “O Flamengo pôs a casa em ordem”, diz o outro. Colocar jovens para dormir em container e não pagar a indenização das famílias é apenas um detalhe no futebol mercantilista. Em qualquer lugar sério, o Flamengo estaria com as atividades suspensas por três anos. Por aqui, “o Flamengo é o Brasil no mundial do Catar”. Até o momento, nenhuma pessoa foi responsabilizada criminalmente pela tragédia.
Em 01/12/2019 aconteceu uma tragédia num baile funk no bairro de Paraisópolis, em São Paulo. Cinco policiais, argumentando que buscavam dois suspeitos, barbarizaram e causaram o caos num evento com milhares de pessoas, causando pisoteamento. Imagens chocantes mostram o grau da barbárie dos policiais, que cercaram jovens em ruelas e os espancaram mesmo eles estando desarmados e não apresentando risco algum. Outra imagem mostra um policial rindo enquanto dá cacetadas em jovens passando com medo. Nos dias seguintes à tragédia, todas as manifestações públicas do governador do Estado, João Doria Jr., foram para proteger os policiais. Nenhuma manifestação de dor ou de solidariedade às vítimas, nada. O governador duvidou das imagens que mostravam a barbárie e não decretou luto oficial. Disse que a política pública de repressão aos pancadões e de criminalização do funk vai continuar. Dois dias depois, Doria compareceu a um evento da Revista Isto É em que foi premiado como gestor público do ano. Disse ele ao receber o prêmio: “O que mais precisamos no Brasil é Justiça, obediência e é isso que São Paulo faz”. No dia seguinte à premiação, o ex-presidente FHC elogiou João Doria, dizendo que ele é “uma das vozes racionais do Brasil polarizado”. De seu apartamento em Higienópolis, o ex-presidente não vê e não se importa com as dores de Paraisópolis.
Doria trouxe para a política as melhores e mais modernas técnicas da publicidade. Ele é um produto e o eleitor não é tratado como cidadão e sim como consumidor. Doria vai ajustando o seu produto, no caso a si mesmo, para se adequar àquilo que o consumidor quer comprar. Em 2018, o consumidor/eleitor quis a barbárie. A principal promessa de Doria na campanha eleitoral foi colocar a polícia para matar. “Mandar bandido para o cemitério”, foram as palavras ditas pelo então candidato, que também prometeu pagar os melhores advogados na defesa de policiais que fossem processados por abusos cometidos em operações. Amigo de Doria, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, trabalha incessantemente para diminuir as futuras dívidas que Doria possa contrair caso resolva cumprir sua promessa. O tal do “excludente de ilicitude”, que basicamente foi o carro-chefe de Moro em seu primeiro ano de gestão, praticamente elimina a possibilidade de punição a policiais que cometam erros. O excludente não foi aprovado, mas Moro não vai desistir e a lei nunca foi exatamente um problema para ele. Uma em cada três mortes violentas ocorridas em São Paulo é causada pela PM. No RJ, a situação é tão grave quanto, com a polícia batendo recordes de mortes e com o crescimento do domínio das milícias, já elogiadas pelo atual presidente, Jair Bolsonaro, quando ele era deputado. Em 2018 o eleitor brasileiro pediu por barbárie. Em 2019 os eleitos estão entregando o que foi pedido.
O acionista da Vale, o torcedor do Flamengo e o eleitor de Doria não têm do que reclamar em 2019. Ganharam dinheiro, títulos e viram a polícia “apavorar” os funkeiros que incomodam. E a barbárie está só começando. Ela já está precificada. Na foto vocês veem Dennys Guilherme dos Santos de 16 anos. Umas das vítimas de Paraisópolis. Uma das vítimas da política de Doria. Uma das vítimas do Brasil.

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Sobre jet skis, poupança e imbecis



Não há nada pior no mundo do que um rico idiota. Todas as grandes tragédias da história da humanidade, no fundo, foram causadas por ricos idiotas. Quando eles se juntam para fazer merda, normalmente sai algo gigantesco. No caso brasileiro, não há símbolo maior da idiotice entre os ricos do que o jet ski.
O jet ski não serve para nada. Sua única função é causar risco à vida do seu condutor e das pessoas próximas. É estatisticamente impossível que uma pessoa que é dona de um jet ski não seja idiota. Rico de vez em quando gosta de pagar para arriscar a vida. Eles devem enxergar nisto uma forma de mostrar coragem, sei lá. Ou talvez a vida seja tão vazia que eles só enxerguem algum sentido no prazer de arriscá-la. O conceito de coragem desta galera é diferente. Aí eles fazem idiotices. Há outras, tipo comprar um kart. Mas neste caso, ao menos, eles não arriscam uma vida que não seja a própria. Pular de paraquedas também é meio idiotice, embora neste caso ao menos as pessoas tenham uma vista legal. Não tenho nada contra pessoas arriscarem a própria vida por diversão, desde que seja só a própria vida. Não é o caso do jet ski.
Quer ver uma pessoa de classe média achar que está subindo na vida é coloca-la em contato com alguém que tem um jet ski. A classe média pira quando faz coisas de rico. Classe média fica uma semana falando quando vai numa festa chique. Uma semana antes e uma semana depois. Conta para todo mundo. Enlouquece quando compra um apartamento em prestação de trinta anos num prédio com piscina. Mas nada a deixa mais maluca do que andar num jet ski.
De todos os bens e serviços supérfluos do planeta nenhum é mais supérfluo do que o jet ski. Eu sinto que todas as babaquices de quem é muito rico tem alguma função, exceto o jet ski. A piscina ao menos refresca. O iate é ao menos um meio de transporte. Vinho pelo menos deixa bêbado. O jet ski não faz nada. É apenas um jeito de jogar muito dinheiro fora.
“Crescer na vida” no estágio classe média – elite não significa nada além de inventar novos supérfluos. E a classe média não mede esforços no sonho de querer parecer cada vez mais com a elite que venera. Para quem não me conhece, eu sou um paulistano de classe média, faço parte do grupo social mais imbecil da história da humanidade, embora tente ao máximo sair disso. Sou o hipócrita, como dizem meus amigos de classe média descontentes com as minhas críticas. Nenhum assunto no momento me causa mais brigas com os meus amigos deste mundo do que casamentos. A impressão que tenho é que paulistanos de classe média simplesmente não conseguem mais casar em SP. Tem que ser um casamento “mágico”, normalmente copiado das séries americanas dos anos 90. Eles não conseguem mais casar num salão de festas na Lapa num sábado à tarde, tem que ser numa fazenda ou na praia e tem que durar o fim de semana todo. E tem que ser tudo exagerado, quase um jet ski. Isto vai criando uma espécie de rede de desperdícios. Vendo que a classe média agora casa na praia no fim de semana, o casamento do rico acontece na Europa e dura sei lá quantos dias. E assim vamos.
A nossa hierarquia social se reflete na rede de conselhos. É muito raro uma pessoa mais pobre dar conselhos para alguém mais rico. É raro não só o rico ter interesse em ouvir o que o mais pobre tem a dizer, mas também o próprio pobre se sentir à vontade para falar. Mais do que isto, é muito raro a pessoa mais rica ter interesse real na vida da pessoa mais pobre e ocorre certa aversão do mais rico quando ele acha que o mais pobre exagerou no consumo. O rico dono do jet ski fica bem contrariado quando vê o gerente da sua empresa aparecer com um carrão novo na firma. “Ele deu um passo maior do que as pernas”, pensa o rico. A mesma coisa acontece com a pessoa de classe média quando vê alguém mais pobre, por exemplo, comprar um Iphone. Aliás, poucas coisas revoltam mais uma pessoa de classe média do que pobre de Iphone. “Que irresponsabilidade!”. É neste contexto de país que chegamos a Paulo Guedes.
Em entrevista à Folha de São Paulo neste fim de semana, o ministro da Fazenda do Brasil disse que rico sabe poupar, mas pobre não. Não sei se Paulo Guedes tem um jet ski, mas neste texto eu o tratarei como dono de um. Paulo Guedes é o dono do jet ski que não entende como um pai de família que ganha um salário mínimo por mês não consegue poupar. Paulo Guedes é o dono de jet ski que matricula os filhos numa escola que custa cinco dígitos, mas não sabe como um pai de família que ganha um salário mínimo por mês não consegue poupar. Paulo Guedes é o dono de jet ski que gasta cinco dígitos numa garrafa de vinho, mas não sabe como um pai de família que ganha um salário mínimo por mês não consegue poupar.
No Brasil vivemos em bolhas. Do mesmo jeito que a minha bolha é a da classe média que quer casar na praia tipo os personagens de séries americanas, a bolha de Paulo Guedes é a dos donos de jet ski. Imagino que uma vez por mês, os donos de jet ski se reúnam uma vez em Trancoso, em Jurerê Internacional ou em New York para debater os rumos do mundo. Eles são as pessoas que dão os conselhos e, como tais, não precisam ouvir ninguém. Poupar é fácil para quem tem jet ski. Eles não estão dispostos a ouvir os que estão abaixo e conhecer suas dificuldades. Não é a função social deles. Eles decidem e aconselham, e o conselho do momento é poupar.
Poucas atitudes são tão arrogantes quanto o ato de aconselhar. A pessoa que aconselha se enxerga sempre como superior moralmente à aconselhada. Ela sabe o que é melhor para a vida do outro, mesmo sem saber os detalhes e as dificuldades reais da vida do aconselhado. “Pobre tem que gastar menos”, diz o dono do jet ski. Aqueles que enxergam o dono do jet ski como supra sumo da verdade, dono de um “conhecimento” que só o status de dono de jet ski pode trazer, elogiam o ministro, mesmo que estejam atolados em dívidas impagáveis pelo apartamento no prédio com piscina que quase nunca usam e pelo carro com câmbio automático, “porque sabe como é, desacostumei do câmbio automático”.
Paulo Guedes não sabe nada e foi alçado ao cargo de economista sábio do momento pela associação dos donos de jet ski. Esta associação cria heróis que facilmente são comprados pela classe média. Não tem conhecimento algum sobre a realidade do país. Conseguiu convencer a classe média que casa na praia, porque, afinal, se ele tem um jet ski é porque deve saber de algo. Paulo Guedes, o mesmo ministro que diz que “pobre não sabe poupar”, teve como principal medida para aquecer a economia até o momento a liberação de dinheiro do FGTS, uma poupança pública, para que pobre pudesse consumir. Pobre consumindo incomoda. A classe média, aquela atolada em dívidas, acha isto uma irresponsabilidade. “Onde já se viu o fulano ir para a Disney?”. O pobre indo para a Disney incomoda muito mais do que o rico tendo um jet sky.
Se eu concorresse à presidência, eu teria duas propostas. A primeira seria aumentar muito o imposto de renda sobre a elite, mas também sobre a classe média. Cerveja artesanal, restaurante japonês, viagem para a Disney, tudo isto teria imposto dobrado, e olha que eu nem sei para ser honesto quanto é o imposto disto. O objetivo seria mostrar para a classe média que ela está muito mais perto do “pobre que não poupa” do que do dono do jet ski. O segundo, seria a expropriação dos bens e imóveis de todos os donos de jet ski. Esta segunda causaria mais polêmica. "Onde já se viu propor algo assim", diriam os donos de jet ski. Eles já se mostraram dispostos a tudo para manter seus jet skis. No fundo, a base deste governo é esta. Donos de jet ski querendo manter seus jet skis, com o apoio da classe média que sonha em ter um jet ski. Se tiver que destruir a democracia para isto, paciência. Os pobres já consumiram muito nos anos 2000. "Onde já se viu? Quebraram o país!" Agora está na hora deles pouparem. Enquanto isto, a turma do jet ski dá uma “apavorada” nas praias mais descoladas do país. E dá conselhos. "Tá na hora de poupar".

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

O leão, as hienas e o gado




Nasci em 1984, mas minha primeira memória na vida é a final do campeonato paulista de 1988, em que o Corinthians derrotou o Guarani por 1x0 na prorrogação com gol do Viola. Nestes 35 anos de vida e 31 de memória, eu sinceramente não me lembro de nada que tenha sido tão ridículo quanto o vídeo postado hoje pelo presidente da República Federativa do Brasil, Jair Bolsonaro. Constrangimento é uma das palavras-chaves deste governo, junto com ignorância, arbitrariedade, violência e autoritarismo. Bolsonaro e todas as pessoas ao seu redor são toscas, completamente incapazes de produzir algo que tenha alguma validade, mas mesmo assim este vídeo surpreendeu. Somos, afinal, governados por um aluno de quinta série que vai repetir de ano.
Além da tosquice, são muitas as características de Bolsonaro que podemos ver no vídeo. A primeira, é que ele se sente o leão na selva, o rei. Ele se sente o ser mais forte no seu mundo megalomaníaco. O outro é a paranoia. Bolsonaro é paranoico e conseguiu criar um verdadeiro reino da paranoia, em que todos são movidos pela mania de perseguição, pelo medo e por um estado alterado de “realidade” em que estamos numa verdadeira guerra, em que apenas Bolsonaro pode salvar. No vídeo, todos estão atacando o leão Bolsonaro. Não apenas os inimigos de sempre, aqueles que ele ameaçou prender, expulsar e metralhar durante a campanha, como PT e PSOL, mas basicamente qualquer entidade, nacional ou internacional, que ouse contestar a supremacia do leão. Bolsonaro se sente atacado pela ONU, pelo Greenpeace, pelo MBL, pela CUT, pela Veja, basicamente por todos. Nada mais paranoico e megalomaníaco.
No vídeo, o leão acaba sendo salvo por um outro leão, uma entidade chamada “Conservadores Patrióticos”, que teria muito mais sentido no vídeo se fosse representada por um boi, e não por um leão. O “Conservador Patriótico” nada mais é do que o que nacionalista bocó bolsonarista, aquele ser que basicamente detesta todas as características nacionais, detesta nossa música, nossa cultura, nossa literatura, mas que se acha nacionalista porque hasteia a bandeira, canta o hino nacional que não é capaz de interpretar e veste a camisa da CBF. Na selva bolsonarista, o leão Bolsonaro aposta neste gado para chegar ao triunfo.
O leão Bolsonaro é incapaz de lidar com conflitos ou com o debate. Já deixou bem claro durante toda sua vida como deputado insignificante que não acredita na democracia como regime ideal de governo. Todas as suas referências políticas brasileiras são de ditadores e torturadores, gente que colocava ratos nas vaginas de mulheres torturadas em sessões monstruosas. Elogiou Pinochet no Chile, Strossner no Paraguai, entre outros. Sua presidência é baseada na mentira e nas teorias da conspiração. O Greenpeace, ele diz, espalhou óleo pelo litoral do Nordeste. Baseado no que ele diz isto? Em nada. Ele apenas quer assim. Não foi tendo algum tipo de responsabilidade que Bolsonaro se transformou em leão da selva. Foi mentindo e agredindo, não teria porquê mudar após atingir o ápice.
Bolsonaro conseguiu transformar o Brasil numa grande selva da paranoia. Criou uma verdadeira realidade paralela. Basta entrar na rede social de qualquer eleitor fanático do leão para notar o quanto nossa realidade é assustadora. Uma parcela gigantesca da população está completamente afastada de qualquer tipo de realidade, sendo informada quase que exclusivamente por fontes falsas ou inexistentes. São pessoas que postam diariamente sobre a conta secreta de um trilhão de dólares de Lula na Suíça, sobre a cirurgia de sexo que o PT queria fazer em crianças, sobre a mamadeira de piroca, sobre a economia do Brasil que não para de crescer graças a Bolsonaro. Pessoas que perderam completamente a capacidade de reflexão e pensamento, totalmente hipnotizadas pela situação. Lembro-me de uma vez em que o leão, dois dias após a também muito constrangedora frase em que dizia que a solução para o meio ambiente era fazer cocô dia sim, dia não, discursava para o seu gado e falava que ia acabar com o cocô no Brasil, comunistas e corruptos. Antes de explicar a “piada”, os seus seguidores já estavam rindo e aplaudindo enlouquecidamente. Sim, as pessoas riram e aplaudiram apenas a seguinte frase: “vamos acabar com o cocô no Brasil”. Qualquer coisa que o leão diga, os gados aplaudem. Como lidar com uma situação destas sem esperar o caos?
Bolsonaro usa muito a expressão acabar. Ameaça tirar o Brasil de qualquer associação que possa representar um controle externo ao seu domínio. Durante a eleição, ameaçou tirar o Brasil da ONU e do Mercosul, por exemplo. Uma das hienas que atacavam o leão e era depois posta para correr pelo leão-gado é o STF. Esta instituição é tudo que Bolsonaro e seu gado odeiam. A função do STF é defender uma constituição-cidadã. Por mais que o Supremo tenha falhado diversas vezes nesta função nos últimos anos, ele é o maior obstáculo para o tipo de regime que Bolsonaro tanto exalta e quer implantar. Seu gado é diversas vezes incitado por ele e pelo ministro da Justiça a pedir o fechamento do Supremo. O filho do leão faz piada sobre isto, aliás. “Basta um cabo para fechar a instituição”. Um cabo e um rebanho de gado.
Li um texto há alguns dias em que uma senhora alemã relatava o bombardeio de Danzig durante a Segunda Guerra. Com um dos filhos no colo, ela dizia “nós merecemos isto”. Bolsonaro é fruto de diversos erros históricos, que culminaram nesta coisa assustadora. Ele conseguiu chegar ao poder do leão graças ao gado e a uma parte das hienas, que nas eleições agiram como gado. Boa parte da imprensa que há um ano tratou a escolha entre Bolsonaro e outra pessoa como "difícil" hoje é tratada como hiena. A única forma de derrotar o leão é com a união das hienas. Estas devem deixar toda diferença de lado neste momento. A selva brasileira segue em geral sem acordar para o que está acontecendo. Bolsonaro e seu governo vão dando diversos sinais de que tentam ao pouco romper com o que resta de democracia no país e ameaçando as relações com vizinhos. Talvez só acordem chegando em Danzig. 

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A privatização de presídios, a escravidão e a barbárie




O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, ficando apenas atrás de EUA e China. São 812 mil pessoas presas, sendo que aproximadamente 40% destas pessoas não têm condenação. O dobro do números de vagas em penitenciárias. É uma população carcerária que cresceu nos últimos anos a uma taxa de 8,2% ao ano, o que significa que teremos em seis anos uma população carcerária maior do que Brasília. Aparentemente prender mais não acalmou a sanha punitivista da sociedade. A maioria das pessoas ainda acha que prendemos pouco e que a solução mágica para todos os problemas do país está em prender mais. Bolsonaro e Moro seduziram a classe média medrosa com este discurso, aliás. A mídia que abastece esta classe média diariamente com sua dose de medo e publicidade revela seu choque cada vez que “denuncia” que pessoas podem ser soltas com a revogação da inconstitucional interpretação que permite a prisão em segunda instância. É neste cenário que se propaga no país a ideia de privatização das penitenciárias.
Antes de entrar no assunto, acho importante citar que uma coisa que me incomoda muita no debate sobre privatizações é a forma como o verbo “privatizar” é tratado como se não precisasse de um complemento. “Você é a favor ou contra privatizar?” é a pergunta. A verdadeira reposta não deveria ser sim ou não, mas sim “O quê?”. Sim, porque privatizar aeroporto é muito diferente de privatizar o serviço de água ou de energia, requer análises completamente distintas. Isto dito, o meu ponto de vista é que privatizar penitenciárias é um absurdo, fruto do desenvolvimento da barbárie que começamos a viver. E o principal motivo é que esta privatização gera um novo incentivo econômico para prender pessoas. Todos os sistemas propostos até o momento, como o que João Doria quer implantar em SP, por exemplo, remunera as empresas que administram as cadeias a partir do número de presidiários. Desta forma, quanto mais preso, mais grana. Geraremos, caso este processo siga em frente, uma verdadeira indústria de prisões num país com uma classe média cada vez mais sedenta por sangue e punição e com uma visão torpe de justiça, entendida por muitas como algo só alcançado através da prisão.
O Brasil prende muito e mal. Jovens pobres têm suas vidas destruídas por pequenos delitos, muitas vezes ligados às drogas. Um em cada três presos no Brasil está na cadeia por ligação com o tráfico. Esta luta aparentemente sem vencedores tem sim um lado vencedor, aquele que aposta no uso destas pessoas para ganhar dinheiro. Pessoas que entram nas cadeias jovens, às vezes por um furto, e saem de lá transtornados. Nossas cadeias são verdadeiras máquinas de moer gente. Isto não é diferente nas cadeias privadas. O maior massacre desta década em cadeias aconteceu no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, no Amazonas, de gestão privada, em que o Estado pagava à gestora privada Umanizzare o valor de quase mil presos numa cadeia em que cabiam 500. Há diversas acusações na região de acordos financeiros entre esta gestora e membros do poder judiciário para garantir o “abastecimento” do presídio e barrar as denúncias contra abusos de direitos humanos cometidos dentro dos presídios.
A campanha de João Doria em SP tinha como promessa obrigar presos a trabalhar. Doria olhava para a câmera com cara de mal, tentava demonstrar alguma expressão no rosto e dizia “comigo bandido vai ter que trabalhar”. Obrigar a trabalhar deixava implícito que Doria pretendia parar de alimentar presos que não trabalhassem. O nome disso é escravidão. Sim, obrigar uma pessoa sob custódia do Estado a trabalhar de tal forma que ela perca a vida se não o fizer é escravidão. É a definição do termo. É uma situação muito diferente de dar algum benefício a este mesmo cidadão caso ele opte por trabalhar. Que uma pessoa como Doria tenha conseguido ser eleita com uma proposta absurda destas mostra o quanto a população está disposta à barbárie.
A escravidão proposta por Doria em sua campanha ainda é inconstitucional. Ele vem trabalhando com Moro e com outros para mudar esta lei. “Preso tem que trabalhar, não podem ficar na vida boa enquanto os sustentamos”, diz o governador, o ministro, Datena, entre outros. E assim vamos criando os pilares de um sistema industrial de presos usados como mão-de-obra escrava para o setor privado. Nesta semana, o governador de SP apresentou seu plano de concessão da administração dos presídios paulistanos ao setor privado. O governo do Estado, que hoje gasta R$ 1.500,00 por preso por mês, pagaria R$ 4.500,00 por preso ao setor privado. Fora isto, pelo edital, o presídio privado poderia ter ocupação máxima de 116% da capacidade do local. Preso, afinal, não é gente, não há porquê respeitar a lotação. Pelo projeto de Doria, a concessionária ganharia não apenas com o número de presos, mas também poderia explorar o trabalho do preso. Doria e o mercado apostam na legalização da escravidão proposta em campanha. Contam com Moro para isto.
A solução humana para o problema presidiário no Brasil é prender menos e melhor. Criar penas alternativas para crimes leves. Libertar todos aqueles que hoje estejam presos e aceitarem pagar pelo crime de outra forma. Tirar o máximo de pessoas destes verdadeiros calabouços medievais e tentar salvá-los aqui fora. Mas não é isto que a indústria quer. Ela quer a ampliação de um negócio. O primeiro passo já foi feito, a desumanização do presidiário. Foi fundamental descaracterizar na opinião pública a ideia de que a função da cadeia é não apenas a punição, mas também a ressocialização do detento. A maioria não acredita mais nisso. Os direitos humanos foram por anos ridicularizados e vivemos uma situação em que a maior parte da população já aceita a ideia de que a privação da liberdade não é mais uma punição suficiente para aquele que cometeu um crime. Quer vê-lo massacrado e destruído. É necessário escraviza-lo. Muitos lucrarão com isto. O mercado faz apostas, e no caso brasileiro está jogando pesado a favor da barbárie. Mais presos, mais dinheiro. E o Brasil vai dando mais um passo para cumprir sua grande vocação colonial. A elite branca do judiciário ganhando para mandar jovens negros para o abatedouro por um pequeno furto, onde este jovem se tornará escravo de um grande capitalista para “pagar pelo crime”. O Brasil foi criado como uma grande máquina de moer gente para garantir o lucro de uma pequena parcela de proprietários. A prisão privada nada mais é do que o engenho moderno. Sociedades civilizadas se esforçam para incluir e para tratar com decência a todos, mesmo aqueles que tenham cometido erros. O Brasil faz o oposto. Um passo a mais na barbárie.

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

O Brasil, a submissão e o capacho-mor da República



A palavra para entender a sociedade brasileira é submissão. Acostumamo-nos com uma vida em que baseamos nossos atos em nos submeter e a submeter os outros, de acordo com nosso papel na hierarquia social. Somos doutrinados a aceitar passivamente as humilhações dos que vêm de cima e a humilhar muitas vezes impiedosamente os que estão abaixo. Eu trabalhava com uma colega que era diariamente humilhada pelo gerente da área. Engolia e às escondidas reclamava e chorava. Enxugava as lágrimas e em seguida telefonava para a empregada, dando nela uma senhora escovada porque ela não havia dobrado as roupas corretamente. É assim que tocamos a nossa vida. O gerente, superior a todos os analistas do qual a minha colega fazia parte, era também humilhado publicamente pelo diretor da área, que por sua vez, após humilhar o gerente, era humilhado pelo sócio da companhia, e assim vamos. A submissão em nossa sociedade é vista como qualidade. É a maior exigência que o Deus que criamos nos exige, aliás. O Deus cristão nos pede acima de tudo submissão. Criou dez mandamentos que devemos obedecer e até pediu no seu livro sagrado a um pai sacrificasse o próprio filho, apenas para testar sua submissão.
A classe média e a elite brasileira são doutrinadas à ideia de submissão. Não à toa, Sérgio Moro é amado por estas classes. Ele pisa e humilha os mais fracos. Nas bisonhas sessões da Lava Jato, o então juiz assumia uma figura quase divina. Focava a câmera no acusado e só tínhamos acesso a sua voz, que vinha quase do além, um som divino típico de desenhos animados. Vídeos de Moro “lacrando” se popularizaram entre a classe média. Moro humilhando os advogados dos réus, “colocando os mesmos no seu devido lugar”. Estava claro já lá que Moro não cumpria o seu papel constitucional, estava lá apenas saciando a sede revanchista de uma parcela reacionária da população. Alçado a ministro pelo candidato que ajudou a eleger ao tirar seu maior rival da disputa, Moro pôde mostrar a seus súditos a sua outra face. O juiz que humilhava passou agora a ser humilhado pelo chefe do projeto de poder que representa, cumprindo quase que religiosamente o seu papel na jornada da submissão. Quanto mais é humilhado pelo chefe, mais Moro o defende. A classe média, acostumada a ser capacha, segue idolatrando o ex-juiz. A elite, acostumada a valorizar o capacho, faz o mesmo. É muito importante para ela que a classe média enxergue na submissão o caminho para o sucesso. Que ela seja a chave para a caracterização do “bom funcionário” que sobre na empresa.
Todo governo autoritário tem como regra afastar do poder aqueles que possuem conhecimento técnico e capacidade de questionamento, colocando no poder puxa-sacos inexpressivos, bajuladores profissionais. Não é à toa que temos no governo de Bolsonaro, o deputado insignificante que fez da ignorância seu maior trunfo, este ministério ridículo. Sérgio Moro, o herói da classe média bajuladora, tornou-se ministro da Justiça e da Segurança Pública sem saber nada sobre Segurança Pública, sem ter um único texto publicado em algum lugar sobre o assunto. Ricardo Sales assumiu o Ministério do Meio Ambiente sem ter noção alguma do assunto, não tendo nunca visitado a Amazônia. Abraham Weintraub, ministro da Educação, tem uma vida acadêmica marcada pela inexpressividade e por notas medíocres, nunca tendo trabalhado na área. Paulo Guedes, o ministro da Fazenda, guru de boa parte do mercado que comprou o capitão imbecil, assumiu sem saber que o orçamento de um ano é votado no ano anterior. O governo Bolsonaro é uma espécie de revanche da mediocridade, dos insignificantes e preguiçosos intelectualmente que passaram anos escondidos, desvalorizados e acumulando rancores.
Guedes é uma figura completamente nula na área econômica. Foi alçado ao papel de sabichão-mor da área porque dizia exatamente aquilo que a elite queria ouvir. Tem contribuição zero à academia no assunto. A elite não valoriza a reflexão e a criação acadêmica. Valoriza a bajulação. Guedes é o bajulador, transformado em gênio. Todo o processo educacional pensado pela elite foi pensado para valorizar a pessoa do bajulador. As ciências humanas criam contestadores, e nada é pior para o sistema da submissão do que isto. Devem ser desvalorizadas, do que o país precisa, eles alegam, é de engenheiros, administradores, empreendedores etc. Como uma pessoa como Sérgio Moro que, entre outras coisas, fala conje, não sabe a diferença entre porque e por que e escreve “há mil anos atrás” passou num concurso para juiz? Fácil explicar, as provas só pedem decorebas. Moro é incapaz de escrever um texto simples com início, meio e fim, mas provavelmente decorou o artigo sei lá qual do não sei o que. As provas são feitas para pessoas que sabem os “macetes”, e não para quem consegue refletir e questionar algo. Aprendeu macetes e bajulou. E seguirá fazendo isto. É só o que sabe fazer. É o papel que cumpre.
A maior dificuldade que a classe média e a elite têm em relação a Lula está longe de serem as relações escusas que seu governo teve com figuras corruptas. Elas não estão nem aí para as patéticas tentativas do atual ministro Moro de defender o presidente e sua família dos inúmeros casos de corrupção em que estão envolvidos. O maior problema é que a figura de Lula, em certa medida, quebrou momentaneamente a corrente da submissão. Lula chegou ao poder sem ter “diploma”, ou seja, sem decorar os macetes para passar na prova. Uma coisa que acho interessante em Lula e que é pouco dita é que ele tem uma capacidade única de não mudar o discurso e o tom de voz de acordo com o interlocutor. Eu, como crítico que sou deste modelo podre em que vivemos, não consigo fazer isto. É impressionante como minha postura automática é mudar meu tom de voz quando estou falando com alguém de acordo com a hierarquia social. Se vou falar com uma pessoa mais pobre, por exemplo, falo mais devagar. Nós “adoramos” fazer isto, aliás. Pegue qualquer programa de TV e note isto. Olhe como Luciano Huck, por exemplo, muda o jeito de falar quando está “ajudando” alguém pobre em seu programa. Lula não faz isto, fala de igual para igual. E mais do que isto, Lula não muda em nada as palavras que usa nos mais diferentes locais. O teor do discurso muda, é óbvio, mas o vocabulário é o mesmo. Poucas coisas tem mais papel na nossa sociedade opressora do que a linguagem e nada era mais arrebatador e revolucionário do que ter uma pessoa falando a mesma linguagem com todos. Não apenas internamente, aliás. Lembro-me de um vídeo de Chico Buarque em que ele dizia que a maior qualidade de Lula é que ele não abaixava a cabeça para o EUA e não falava grosso com a Bolívia. Lula era o mesmo com todos. Não à toa os erros gramaticais de Lula eram motivos de chacota e os de Moro passam incólumes. Moro tenta falar bonito e não consegue. A elite se identifica com isto. Criou-se para enfrentar Lula um herói e um mito que representam bem seus valores. De um lado, um puxa-saco medíocre, que humilha os que estão abaixo e se mostra totalmente submisso aos que estão acima. Do outro, um capitão tosco que fala em patriotismo enquanto presta continência ao embaixador americano. O herói diplomado se uniu ao capitão  mítico ignorante, derrubando assim o torneiro mecânico que ousou, mesmo que às vezes timidamente, enfrentar este sistema. Lula é o “vagabundo”, que subiu na vida estimulando “greves” e questionando. É preciso que a sociedade enxergue como vitorioso não ele, mas o seu oposto, o cordeirinho. A elite ganhou muito dinheiro com a bonança da era Lula. Mas isto não importa. As relações de dominação e sua manutenção plena eram mais importantes do que qualquer outra coisa.
A melhor forma de criar bajuladores é o estímulo à disciplina. A educação libertadora de Paulo Freire deve ser substituída pela educação dos militares. A PM que prende é a PM que educa e as escolas devem afastar os contestadores desde cedo. É muito importante que desde cedo a criança já seja doutrinada a acreditar nos valores da submissão e a enxergar nela o caminho para o sucesso. A delação é tratada como qualidade e, portanto, estimulada. Regimes autoritários funcionam sempre da mesma maneira. É quase uma ciência exata. Há um verdadeiro passo-a-passo, cumprido à risca no Brasil desde 2016. Numa sociedade que estimula a imbecilidade, Bolsonaro é imbecil-mor. Uma sociedade baseada na bajulação, que não à toa tem como herói maior uma figura como Sérgio Moro, o bajulador-mor da república.

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

O presidente merda



O presidente da República, Jair Bolsonaro, repetiu no discurso de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas a mesma tática que o consagrou no Brasil. Falou muita merda. Durante alguns minutos que pareceram uma eternidade, o presidente mostrou ao mundo a face do “novo” Brasil que ele representa: um país ignorante, prepotente, fanático religioso, que sente horror à ciência e ao conhecimento, paranoico e agressivo.
Bolsonaro deve à quantidade gigantesca de merdas que disse durante a vida a sua ascensão na política. Capitão fracassado afastado no Exército, tornou-se vereador e deputado falando merda. Sem nenhuma proposta relevante e com um mandato insignificante, representando um pequeno grupo de pessoas tão ignorantes e rancorosas quanto ele, encontrou em programas de subcelebridades como Superpop, Datena e CQC a chance de se apresentar a seu público. Sem ser especialista em nenhum assunto, era chamado por estes programas para debater os mais variados temas, cumprindo sempre o papel de ofender e xingar outros convidados.
Muitas pessoas são como Bolsonaro e, usando jargões publicitários, ele teve a chance de, enquanto a Lava Jato usava a grande mídia para mergulhar o país no punitivismo e na mediocridade, vender o produto que o público queria. Sua presença em programas em que se expunha como alguém racista, homofóbico e machista dava audiência e gerava polêmica. Pessoas medíocres adoram pessoas “polêmicas”, identificam-se com elas.
Num momento em que o país está mergulhado na merda, ninguém se adaptou melhor a esta era do que Bolsonaro. Ele é o verdadeiro espírito do tempo. O Brasil consagrou nas urnas no ano passado toda esta “brilhante” trajetória baseada em falar merda e não há razão agora para Bolsonaro mudar. Ele saiu de capitão fracassado a presidente tendo como única arma a facilidade com que fala merda. Aqueles que achavam que ele ia mudar depois da eleição, que ia se adaptar à solenidade do cargo, são analistas realmente muito ruins.
Como grande falador de merda que é, Bolsonaro atrai e se cerca de gente que fala merda. É como se houvesse um Sistema Merdal semelhante ao Sistema Solar, com Bolsonaro como grande Merda sendo rondado de Merdinhas. Poucas coisas são mais simbólicas deste governo do que o presidente falando sobre cocô, aliás. O ministro da educação segue seus passos, tentando falar o maior número possível de merdas e desrespeitar o maior número possível de pessoas para ganhar seu espaço. O ministro da Justiça usa a esposa para desrespeitar feministas e puxa o saco sempre que possível do chefe. O ministro da Fazenda acha legal ofender a esposa de outro presidente com jargões machistas e ri do assunto. O ministro do Meio-Ambiente, que tentou se eleger deputado tendo como proposta matar pessoas no campo, apoia o presidente quando este inventa dados para negar as queimadas na Amazônia. Todos eles acharam demais o discurso de Bolsonaro na ONU. Acham demais que ele tenha falado merda. O ministro da Justiça, que ficou em silêncio por dois dias quando uma criança foi assassinada no Rio de Janeiro, correu ao Twitter para elogiar a fala do presidente e sua luta contra o “comunismo” e contra o “ambientalismo radical”. O mundo pôde ontem conhecer um pouco mais do que está acontecendo no Brasil. Digo um pouco mais porque o presidente até que “pegou leve” na Assembleia. Durante a campanha, por exemplo, ameaçou tirar o Brasil da ONU, disse que ia prender ou expulsar do país os opositores, ameaçou fechar o Supremo, entre outras coisas.
O Brasil tem diferentes períodos em sua história. Império, República do Café com Leite, Estado Novo, primeiro período democrático, Ditadura Militar e Nova República, resumindo, tendo esta última terminado em 2016 ou 2018, de acordo com a análise. O certo é que hoje vivemos a República da Merda. Uma nova era em que a ignorância é valorizada e premiada. Onde falar merda é visto como qualidade. Os ciclos no Brasil duram pelo menos 20 anos. Muita, mas muita merda vai vir ainda. Atualmente temos um Supremo de 6x5. Todas as ações da Lava Jato que envolvem Lula são vencidas pela operação por 6x5, todas as que não envolvem o ex-presidente terminam com 6x5 contra a operação. Em 2021, dois dos ministros que votam sempre contra a Lava Jato sairão, sendo substituídos por nomes de confiança de Bolsonaro. A merda está apenas começando.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Silêncio, culpa e autocrítica



Era uma reunião de família numa cidade do interior e diversas pessoas cercavam o tio mais velho, que contava histórias sobre a vida. Num determinado momento, este tio começou a caçoar de um gari que tinha visto no dia anterior, pelo simples motivo de que este usava um celular. Ele achava uma coisa ridícula um gari usar um celular. Boa parte das pessoas que participaram da reunião familiar riu da história. Eu fiquei em silêncio. O silêncio no decorrer dos anos me torna cúmplice dos crimes e da situação em que chegamos atualmente.
Foram diversas as vezes em que fiquei em silêncio. Diversas vezes em que presenciei casos de racismo, machismo e outros tipos de preconceito e fiquei em silêncio. Certa vez, no ambiente de trabalho, cancelamos a distribuição de uma revista já impressa por causa de uma propaganda com possível interpretação racista. O diretor de publicidade foi voto vencido neste cancelamento e, durante a reunião, fez inúmeros comentários racistas. A sala inteira, eu incluso, ficou em silêncio.
Por anos arrumei motivos para justificar meu silêncio. Não podia mandar meu tio mais velho tomar no cu. Não podia mandar um diretor tomar no cu. E assim fui passando os anos vivendo uma vida covarde. Assisti em silêncio mulheres sendo demitidas após a volta da licença maternidade, falando no máximo com o meu colega do lado algo como “a empresa é foda, né?”.
Passei anos assistindo, silenciando e normalizando o mundo de merda que nos cerca. Não pensava na razão do meu local de trabalho só ter basicamente pessoas brancas, enquanto apenas nas funções de limpeza havia funcionários negros. Não refletia sobre o fato de que todos os bares e restaurantes em que eu ia eram compostos basicamente por pessoas brancas sendo atendidas por pessoas negras. É muito cômodo e “fácil” normalizar opressões quando se é homem, branco e hétero. Todo o discurso de meritocracia é formado para agradar pessoas como eu. Na minha faculdade, repleta de pessoas como eu, numa turma de 90 pessoas, havia um negro vindo de escola pública. Ele era suficiente para meus colegas justificarem a opinião contra as cotas. Ele era a prova que dava. Eu ficava em silêncio ouvindo estas opiniões.
Há um assunto em que em boa parte da minha juventude eu contribui com algo pior do que o silêncio. Foram diversas as vezes em que cometi homofobia. Passei a adolescência, a escola e boa parte da vida adulta chamando pessoas de “veado”. Enchia o saco dos meus amigos são-paulinos com isto. Fiz parte do gigantesco grupo de pessoas que basicamente destruiu a carreira do jogador Rycharlisson, por exemplo. Fazia piadas na escola com qualquer colega que “desmunhecasse”, principalmente para provar minha masculinidade para os outros colegas que eram tão babacas e imbecis quanto eu. No trabalho, um colega gay de uma área próxima não gostava da gente, soubemos que ele reclamava de nós. Ficamos putos com ele na época. Não podemos fazer piada com nada? Homens brancos, héteros e de classe média adoram fazer piadas. Gostamos de rir de tudo. É bem difícil ver que não temos graça nenhuma.
O silêncio é um crime. Lembro-me de uma situação que envolve a recusa ao silêncio com uma pessoa que hoje muito admiro. Eu era adolescente e conhecia uma garota chamada Isadora, que era amiga comum de uma outra amiga. Íamos juntos com esta amiga até o metrô e ela me convidou para um almoço de aniversário na casa dela. Eu fui, conversei com as pessoas e, em algum momento, fiz uma piada homofóbica sobre o professor de história. Todos riram, menos Isadora. Ela fechou a cara e me chamou de escroto. Deu-me uma escovada na frente de todos. De lá pra frente, Isadora male mal me cumprimentava na escola. Isadora estava certa. Não faço a menor ideia de onde ela está, mas hoje vejo aquele momento como uma chance não aproveitada de deixar de ser uma pessoa de merda. Demorei, mas aprendi a lição.
Uma parte difícil de ver esta gigantesca onda de imbecilidade que tomou conta do Brasil é de certa forma enxergar o meu passado nela. Eu era uma pessoa que dizia que tudo era mimimi. Aliás, se você conhece uma pessoa que usa o termo mimimi, afaste-se dela o mais breve possível. Cem por cento das pessoas que usam este termo são imbecis. Não há exceção. Eu era muito imbecil, e tenho vergonha disso.
É necessário quebrar o silêncio. E isto significa romper amizades. Ser homem branco, hétero e idiota significa que por muito tempo me cerquei de pessoas brancas, héteros e idiotas. Meu passado é repleto de pessoas assim e boa parte segue do mesmo jeito. Durante a eleição, um ex-amigo veio defender a tortura. Mandei-o tomar no cu. Um outro optou por votar nulo contra o fascismo, porque o governo do PT traria inflação. Não há espaço mais na minha vida para pessoas que igualam fascismo e inflação. A eleição do ano passado era entre civilização e barbárie. Não há espaço para quem não escolheu a civilização. Mas é importante ter em mente que em boa parte da minha vida fiz parte da barbárie. E achava isto engraçado.
Acordar e gritar agora não me isenta das culpas pelo meu comportamento e pelo meu silêncio no passado. Beneficiei-me e sigo me beneficiando de todas as injustiças que finalmente enxergo e denuncio. Mas é importante que eu tenha sempre em mente que sou também culpado por este Brasil de merda em que vivemos atualmente. Seja por preconceito ou por covardia. Isadora é a demonstração de que eu não precisava ficar em silêncio. Isadora é o exemplo. Se eu tenho algum mérito, é por ter mudado. Mas isto não é o suficiente para a redenção. Ela só virá com atitudes. E a primeira é romper com o silêncio.

terça-feira, 3 de setembro de 2019

DESBABAQUIZAÇÃO


Há alguns dias tivemos pela primeira vez no Brasil uma partida de futebol sendo interrompida por conta de gritos homofóbicos da torcida. É um marco na nossa história futebolística, assim como no dia em que o Clube de Regatas Vasco da Gama se recusou a participar do campeonato carioca em prol dos jogadores negros da sua equipe. Nos anos 20 do século passado os maiores clubes do Rio de Janeiro tentaram algumas manobras para excluir jogadores negros da disputa. Enquanto alguns clubes acataram, o Vasco se rebelou e desistiu da disputa do certame, o que decorreu no recuo dos grandes clubes e na mais bela página escrita na história do clube cruz maltino: a luta contra o racismo no futebol.

Quis o destino que o clube de São Januário fosse o protagonista de mais um grito anti preconceito, só que dessa vez de uma forma passiva. O árbitro Anderson Daronco interrompeu a partida por conta da torcida vascaína que se referia ao São Paulo como "time de viado". O juiz se dirigiu ao treinador Vanderlei Luxemburgo e disse que o jogo não seria reiniciado naquelas condições, o que ocasionou o pedido de treinador e jogadores à torcida para que parassem de cometer o crime de homofobia.

O torcedor de futebol finalmente tem a chance de deixar de ser babaca. No Brasil as coisas funcionam assim mesmo, o medo da punição é a melhor ferramenta de diálogo entre uma sociedade reacionária e comportamentos civilizados. O fim da escravidão veio por medo da punição inglesa, o racismo precisou ser tipificado como crime para deixar de ser praticado livremente, o cinto de segurança só deixou de ser objeto decorativo dos veículos apenas quando a multa passou a existir, assim como fumar em ambientes fechados não foi uma prática abolida através de conscientização coletiva. Agora, através da punição ao clube de coração, os torcedores têm a chance de esquecer a babaquice de ser homofóbico e deixar que essa atitude tão comum seja extinta pelo desuso.

É raro para quem escreve algum texto falar com conhecimento de causa. Em geral lemos muito sobre determinado assunto, ouvimos especialistas e damos a nossa opinião sobre um certo ponto. No caso de desbabaquização eu tenho experiência empírica.
Não vou considerar o período adolescente, que é uma fase de amadurecimento das ideias e conhecimento do certo e do errado. É um tempo em que podemos, e quase sempre somos, babacas. Se Rousseau dizia que o homem nasce bom e a sociedade o corrompe, no Brasil o homem nasce bom e o machismo o torna homofóbico. Fui homofóbico por muito tempo. O medo que o homem tem de ser confundido com gay é maior que o de ser confundido com um bandido. O discurso de vários pais, inclusive os presidenciais, de que preferem um filho morto a um filho gay é o tipo de pensamento que baseia diversos espancamentos paternos pelo país.

Deixei de ser o babaca homofóbico. Nunca agredi nenhum gay na rua, mas é nessa afirmação que se escondem a maioria dos homofóbicos. Ser homofóbico não é apenas agredir fisicamente. Ser intolerante é fazer piada, é utilizar característica imutável como xingamento, é tratar diferencialmente pessoas que não têm a mesma orientação sexual, é não querer aparecer em público com uma pessoa gay com medo de que pensem que você é gay. Enfim, há inúmeras formas de ser homofóbico sem que seja pegar uma lâmpada fluorescente e agredir pedestres na avenida Paulista.

Uma boa forma de desbabaquizar é sempre substituir a sua atitude perante aos gays por uma situação racial. Se você vai ao estádio e chama o goleiro adversário de "bicha" a cada tiro de meta, experimente pensar em gritar "macaco". Pareceu racista? Pois é.

Se você não vai convidar aquele primo para o seu aniversário porque ele é gay e você não quer quer ser visto perto dele, tente substituir o primo gay pelo primo preto. Pareceu racista? É porque é.

Desbabaquizar é uma mudança de comportamento, assim como deixar de ser racista. Até hoje existem milhões de pessoas que acham super normal fazer brincadeiras raciais com os velhos amigos negros. Quando eu era babaca cansei de fazer. Lembre-se: utilizar como brincadeira com seus amigos frases como "tinha que ser o neguinho" ou "também, olha a cor" reforça culturalmente as características negativas atribuídas às pessoas negras. Você repete essas falas hoje justamente porque as ouviu durante toda a vida. Caso esse comportamento tivesse sido extinto junto com a escravidão, você não conheceria frases do tipo "preto quando não caga na entrada, caga na saída".

A mudança de comportamento que está sendo proposta para o futebol hoje pretende evitar que crianças que acompanham seus pais aos estádios atribuam conotação negativa à condição homossexual. Eu parei, antes mesmo de virar crime, de utilizar como xingamento as palavras gay, bicha, viado, boiola, baitola, entre outras. Há alguns anos eu não me refiro aos são paulinos com essas palavras. Prefiro caçoar da falta de títulos ou da freguesia em clássicos. Parei para pensar que gritar "ó tricolor, time de viado" é tão ofensivo quanto "ó tricolor, time de neguinho". É com a equiparação, na nossa cabeça, da homofobia ao racismo que conseguimos progredir na desbabaquização, mas isso só funciona se você já evoluiu no entendimento sobre racismo. Se você é como a atriz Regina Duarte que pensa que o seu pai apenas brincava ao afirmar que "lugar de negro é na cozinha", essa estratégia não funcionará com você. Nesse caso você já está morto por dentro.


Caso o racismo não te incomode, pegue qualquer característica sua. Imagine-se no estádio assistindo ao jogo do seu time e a sua própria torcida entoa o grito que te atinge lá no âmago da sua alma. Essa é a sensação que qualquer gay sente quando você se levanta da sua cadeira e vocifera a sua homofobia travestida de tradição.

O comportamento intolerante permeia todos os poros desse esporte. Os jogadores gays são impedidos de revelar a sua verdadeira orientação por medo da reação da torcida. Embora o companheiros, treinadores e dirigentes saibam quem são os colegas de trabalho que sofrem esse abuso psicológico, é impossível imaginar como um jogador faria para assumir sua orientação. Se o torcedor homossexual pode evitar a arquibancada e sofrer em casa, o jogador não pode evitar o gramado, não pode evitar o seu trabalho.

Richarlyson foi jogador do São Paulo entre 2005 e 2010. Foi campeão brasileiro por três vezes, campeão da Libertadores e campeão mundial. Em 2017 Ricky desembarcou em Campinas para assinar com o Guarani, time que estava na série B do Campeonato Brasileiro e do Paulistão. Em qualquer cenário essa contratação seria motivo de festa, exceto pelo fato de que Ricky era apontado como gay. Mesmo sem nunca ter se assumido, e até mesmo tendo negado esse fato, o jogador foi perseguido por toda a carreira. Os torcedores do Guarani fizeram protestos com bombas contra a chegada de Richarlyson.

A torcida do São Paulo não gritava o nome de Richarlyson no Morumbi. O São Paulo não merece ser chamado de time de viado. O clube deve ser chamado, como todos os outros, de time de babacas.

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

O Mr. e a Mrs. Conje




Postou a Mrs. Conje neste último fim de semana: “Mesa posta. Esperando o Ministro da Justiça chegar no Lar! Curitiba gelada e sopinha para aquecer o corpo. Sorry feministas. Mas AMO cuidar de quem eu Amo. Eu trabalho eu pago boletos eu dou emprego e eu motivo , mas amo Cuidar !! Bom final de semana! Beijo gelado de Curitiba.”. A Mrs. Conje é muito ativa no Instagram e em outras redes sociais. Era através delas que o casal Conje se comunicava com seus fãs nos últimos anos. No período em que era juiz, o Mr. Conje não podia ou não queria ter este tipo de contato direto com o seu público para não demonstrar imparcialidade, cabendo a Mrs. Conje a função de laranja do casal nas redes sociais. Não foi apenas nas redes sociais que a Mrs. Conje cumpriu esta função, aliás. Proibido pelo cargo de ter uma empresa de palestras, o Mr. Conje abriu uma empresa em nome da Mrs. Conje para faturar uma graninha extra aos R$ 30 mil que recebia como juiz. Como disse seu aliado e parceiro Deltan Dallagnol, “eles tinham que monetizar a operação”.

O casal Conje é um dos grandes símbolos da classe média brasileira. Neste post da Mrs. Conje há algumas características que podemos encontrar no casal e em seus seguidores. Começando pela forma de comunicação desta turma, a primeira coisa que podemos verificar é a dificuldade gigantesca para utilizar vírgulas. Ela não separa as frases “Eu trabalho”, “eu pago boletos” e “eu dou emprego” com vírgulas para, em seguida, utilizar este complicado instrumento para separar a frase “mas amo Cuidar”. Ela basicamente chuta na hora de usar a vírgula, tem hora que usa, tem hora que não usa. Uma segunda característica do texto da Mrs. Conje é o uso desnecessário de pontos de exclamação. Esta galera adora usar esta pontuação para indicar intensidade. Note que “mas amo Cuidar !!” vem com dois pontos de exclamação, enquanto “Bom final de semana!” vem com um ponto apenas. Acho que a Mrs. Conje quis mostrar que ela gritou alto na primeira frase e menos alto na segunda frase. Antes, ela usou caixa alta para dizer “Mas AMO cuidar de quem eu Amo”. Acho que neste primeiro AMO, a Mrs. Conje quis mostrar que gritou também. Curioso imaginar uma pessoa com aparência tão inexpressiva berrando e gesticulando. Por que o segundo “Amo” começa com letra maiúscula? Provavelmente ela usa a letra maiúscula da mesma forma que usa as vírgulas. Ela chuta, usa de acordo com a vontade. Tive um chefe parecido com o casal Conje que fazia as mesmas coisas. Dá-lhe exclamações, caixas altas e vírgulas fora do lugar. Pontuação excessiva é coisa de quem não gosta de ler. Nunca encontramos este tipo de coisa em Machado de Assis ou Saramago. Se bem que o Mr. Conje já disse que só “lê” biografias, sem saber citar a última que leu.

Na tal da foto, a Mrs. Conje mostra dois pratos vazios, cada um com uma colher, como forma de mostrar o quanto ela ama e seduz o Mr. Conje. Acho que se o prato estivesse cheio, provavelmente a ideia de gerar “inveja” nos outros seria mais bem sucedida, ao menos comigo. Eu gosto de sopa em dias frios. E temos, para fechar com chave de ouro, o uso de algo que mais aproxima o casal Conje do seu séquito de classe média, o uso desnecessário de expressões em inglês. “Sorry”, diz a Mrs. Conje ao provocar as feministas. Gente como ela adora este tipo de coisas. Aposto que a Mrs. Conje fez um “call” para o Mr. Conje para saber se ele estava chegando em casa e depois pediu um “feedback” para o maridinho sobre a sopa invisível. O lado curioso da história é que o inglês do Mr. Conje é bisonho. Há um vídeo dele explicando como “O Poderoso Chefão” influenciou o seu trabalho em que ele tenta falar inglês e a situação é cômica. Comprem pipoca e assistam.

A Mrs. Conje bate no peito para dizer que paga os boletos. Para isto, creio eu, usava parte do auxílio-moradia que o Mr. Conje recebia como juiz. O Mr. Conje recebia um salário de R$ 30 mil, tinha imóvel próprio em Curitiba, mas mesmo assim recebia mais de R$ 4 mil de auxílio-moradia. Ao ser questionado por isto, o Mr. Conje disse que estava há muito tempo sem receber aumento de salário. Tadinho. Vai ver é por isso que aceitou também abrir uma empresa de palestras em nome da esposa, afinal. Como o paulistano que brada contra corrupção, mas passa os pontos da carteira de motorista para o filho do funcionário, o casal Conje não se incomoda muito com a corrupção praticada a seu favor. “Onde está o Queiroz?”, recusa-se a responder o Mr. Conje há quase nove meses.

A Mrs. Conje tem uma vontade incrível de aparecer. É hoje uma verdadeira celebridade típica de “A Fazenda”. O casal Conje, aliás, podia pedir à Record, grande aliada do governo do chefe do Mr. Conje, uma participação da Mrs. Conje neste programa. Ela podia enxergar nisto uma chance de aumentar o número de seus seguidores em redes sociais e provocar ainda mais as “feministas”. A Mrs. Conje não sabe nada sobre feminismo. Fez uma relação muito louca sobre dois pratos vazios na mesa e feminismo. Mas não tem problema. O Mr. Conje também não sabe nada sobre segurança pública e virou ministro, afinal. A Mrs. Conje quer curtidas e sabe provocar, este tipo de programa seria ideal para ela brilhar.

Era pelas redes sociais da Mrs. Conje que o casal declarava abertamente apoio a Jair Bolsonaro durante as eleições presidenciais e que ficava claro que havia uma aliança entre o futuro presidente e o Mr. Conje. É por lá também que sabemos que o casal compartilha as mesmas ideias do presidente, como o machismo, a homofobia e a defesa ao uso da tortura como instrumento judicial. Enquanto o Mr. Conje abria o conteúdo de uma delação não homologada e não provada com denúncias contra o rival de Bolsonaro no segundo turno, a Mrs. Conje postava no seu Instagram uma montagem com o Cristo Redendor usando a camisa da CBF número 17. Já nas primeiras semanas de governo, enquanto o já ministro Mr. Conje se reunia com lobistas do mercado de armas e assinava no dia seguinte um decreto facilitando a posse das mesmas, a Mrs. Conje postava mensagens de apoio à medida, conclamando os fãs do casal a apoiarem cegamente o marido Conje.

Já como ministro, o Mr. Conje deixou de terceirizar o assunto com a Mrs. Conje se rendeu às redes sociais através do Twitter, postando com certa frequência e quase sempre desrespeitando as normas cultas da língua portuguesa. Os erros do Mr. Conje são típicos da classe média tentando falar bonito. O clássico momento em que ele diz conje ao invés de cônjuge, por exemplo, veio porque ele não quis falar algo mais simples, como esposo e esposa. É pelo Twitter que o Mr. Conje se defende dos vazamentos que mostram que ele agiu com parcialidade no caso do ex-presidente Lula, usando quase sempre a palavra “sensacionalismo” para qualificar os órgãos que publicam as informações. O Mr. Conje não sabe o que significa “sensacionalismo”. Usou esta palavra, por exemplo, na entrevista que deu ao programa do Ratinho, rei do sensacionalismo. Ele provavelmente aprendeu esta palavra naquela semana, achou bonita e ficou repetindo. Algumas semanas depois, aliás, o chefe do Mr. Conje utilizou a mesma palavra para falar da imprensa. É pelo Twitter também que o Mr. Conje estimula seu gado a realizar passeatas que, entre outras coisas, pedem uma intervenção militar e o fechamento do STF. Quem segue a Mrs. Conje no Instagram sabe que o casal não é contrário a esta ideia.

O Mr. Conje está com medo de perder o emprego. Anda brigando com o chefe. Para tentar acalmá-lo, postou uma fotinho vestido de soldado na última semana, com um textinho que, como previsto, continha erros de português. “Há mil anos atrás”, escreveu o Mr. Conje de forma redundante.

O Mr. Conje tem enormes dificuldades para formar uma frase com início, meio e fim. Gagueja e não consegue olhar diretamente para a pessoa que o escuta. Como alguém assim conseguiu se tornar juiz? Uma amiga me deu a melhor explicação. Concursos no Brasil não pedem interpretação ou reflexão, cobram decorebas. Assim, um cara como o Mr. Conje, incapaz de escrever um texto simples com lógica, provavelmente decorou em que dia foi assinado sei lá o que de tal lei e cresceu na vida. O casal Conje pode estar começando a perder poder. A Lava Jato sofreu algumas derrotas nos últimos tempos e o Mr. Conje coloca todas as fichas em impedir a aprovação da lei de abuso de autoridade, que visa a obrigar que pessoas como o ex-juiz Mr. Conje tenham que cumprir a lei. Onde já se viu exigir isto do Mr. Conje?

Ao tirar Lula da eleição e garantir a vitória da extrema-direita, o Mr. Conje ganhou uma espécie de salvo conduto da grande mídia e dos fascistas. Ainda é amado e protegido por eles. Enquanto isto, vai cumprindo seu papel de abafar todos os escândalos que envolvem a família Bolsonaro. O Mr. Conje é tipo um gerente de grande empresa. Fala alto com os funcionários, mas fica quietinho quando ouve umas broncas do chefe. Qualquer dia ainda vamos ver o Mr. Conje postar algo deste tipo para o seu chefinho na rede social: “Mesa posta. Esperando o Presidente chegar no Lar! Brasília gelada e sopinha para aquecer o corpo. Sorry esquerdistas. Mas AMO cuidar de quem eu Amo. Eu trabalho eu pago boletos eu dou emprego e eu motivo , mas amo Cuidar !! Bom final de semana! Beijo gelado de Brasília.” Ele nem vai perceber a falta de vírgulas.

sábado, 24 de agosto de 2019

Deus e o Diabo na Terra do Fogo




Qual a responsabilidade pessoal de cada um nos atos de um regime totalitário? Por que algumas pessoas, aparentemente boas e normais, aceitam passivamente colaborar com as atrocidades de um regime autoritário enquanto outras enfrentam o totalitarismo, mesmo que isto tenha como custo a própria vida? São estas perguntas que Hannah Arendt tenta responder no ensaio O que chamamos de responsabilidade pessoal em uma ditadura publicado alguns anos depois do genial e polêmico Eichmann em Jerusalém. Diz Arendt que a principal característica que separa os colaboracionistas dos opositores é não apenas a capacidade de pensar nos atos que estão cometendo, mas a capacidade de julgar a si próprio. A grande maioria, conclui-se do ensaio, é incapaz de discernir certo e errado através de valores morais e sim através da vontade. O certo para a maioria é o que “eu quero”, e esta vontade se sobrepõe a qualquer tipo de ética vindo do exterior.
Não há criação humana mais humana do que o Deus do Velho Testamento. O homem pegou todos os seus defeitos, colocou-os num ser imaginário e o chamou de Ser superior. O Deus do Velho Testamento é mesquinho, rancoroso, vingativo, sádico e sanguinário. Ele é invisível e julgador, está conosco o tempo todo e nos mandará passar a eternidade num lugar quente e cheirando a enxofre caso descumpramos uma das dez regras que ele mandou gravar numa pedra. Por puro sadismo, pediu a um pai que sacrificasse um filho sem motivo, só para que aquele provasse sua submissão. Fechou o mar no momento em que os egípcios passavam. Lançou uma praga contra uma cidade de pecadores. Este é o Ser que o homem criou e chamou de Criador. Este Criador, dizem os homens, fez-nos à sua imagem e semelhança. Assim, o Ser mesquinho, rancoroso, vingativo, sádico e sanguinário nos fez a sua imagem e semelhança. O oposto é mais verdadeiro. O ser que se diz criado foi quem criou um Criador à sua imagem e semelhança e se equiparou a Ele. Se Deus é o Ser Superior e tudo pode, nós, criados por Ele à sua imagem e semelhança, somos os seres superiores e tudo podemos. A visão do amor deste Deus é extremamente ligada à vontade e a submissão. Deus ama aquele que é submisso e age de acordo com Suas vontades. Expulsou Adão do Paraíso por um erro e toda a humanidade paga por isto.
“Deus está sempre comigo” ou “Deus me ama” dizem os mais religiosos. Se o Ser superior está comigo, eu tudo posso. Para este Deus não há valor moral, há apenas a vontade de ser atendido. Se este Deus pode tudo e Ele está comigo, eu posso tudo. A vontade de Deus passa a ser a minha vontade e perde-se assim a capacidade de julgamento moral sobre as próprias atitudes. Por que um governador evangélico desce de um helicóptero comemorando uma ação policial que resultou numa morte? Porque ele quer. Não há, na visão de mundo desta pessoa, paradoxo nenhum na situação, uma vez que a vontade dele é a vontade de Deus. Por que tantos pastores evangélicos apoiam alguém como Bolsonaro, que abertamente defende a tortura, o preconceito e para quem a principal função do estado é, através da violência, afastar ou eliminar aqueles que ousam discordar de suas “ideias”? Porque não há diferença alguma entre o Deus do Velho Testamento e este novo Deus-Estado, que mata e tortura aqueles que ousarem enfrentar o Senhor.
As bases do cristianismo são submissão e punição. Deus, aquele Ser que está conosco o tempo todo e cuja vontade se mistura a do fiel, manda. Quem obedece vai para o céu. Quem desobedece, para o inferno. Não há espaço para algo diferente da submissão. Deus não precisa ser provado para seus fiéis. Ele apenas existe. Suas vontades, portanto, não precisam de demonstração, elas apenas precisam ser atendidas. A ciência, quando prova que Deus está errado, é a inimiga maior e deve ser combatida.
Bolsonaro acha. Ele acha que os médicos cubanos eram guerrilheiros comunistas. Também acha que ONGs colocaram fogo na Amazônia. Perguntado sobre provas, respondeu “Precisa provar isso daí?”. Para quem acredita no Deus do Velho Testamento, nada precisa ser provado. Se Deus está ao seu lado, por que Bolsonaro precisa provar algo? O achismo dele é o achismo divino, e isto já basta. Não à toa, o grupo de procuradores da Lava Jato, braço judicial do bolsonarismo, é quase todo composto por evangélicos. "Não há provas, mas há convicção". Basta a fé e a crença de que Deus está ao seu lado, enxergando-se o crente junto ao Ser superior. Os órgãos que ousam negar os achismos e as vontades desta turma devem ser extintos. INPE, IBGE, entre outros. Queimar a Amazônia nada mais é do que uma praga do Egito ou o Mar Vermelho fechando.
É pouco dito, mas o Brasil passa por uma versão tosca de Reforma Protestante. É muito provável que nos próximos anos os evangélicos se tornem maioria no país. A falta de perspectivas numa vida terrena marcada pela competitividade, pelo consumismo, pela ansiedade e pela infelicidade empurra as pessoas para a crença na salvação através de um mundo imaginário que virá depois do fim do sofrimento terrestre. Eles chegaram ao poder e não se importam com os miseráveis sendo assassinados pela polícia carioca ou pelas ameaças que Bolsonaro faz à vida e à liberdade dos oposicionistas. É a vontade do Deus em que eles acreditam. A salvação virá depois, no mundo imaginário. Para quem não acredita nesta versão sanguinária de Deus e conserva alguma moralidade, resta lidar com este inferno terrestre. O fogo na Amazônia pode ser apenas o começo. Podemos não acreditar em Deus. Mas vendo tudo que está acontecendo, é difícil não acreditar no diabo.