Eu sempre achei que uma das
coisas mais feias que existe nas cidades grandes são estes cemitérios de pedra.
Eles contam muito sobre o que nos tornamos. Não basta mais os esforços para nos
diferenciarmos em vida, passamos a buscar a diferenciação na morte. Isto,
claro, sempre existiu. Basta ver as pirâmides do Egito, afinal. Mas desde o
século XIX, possivelmente, houve uma massificação deste processo. Algumas
pessoas constroem verdadeiros mini templos em seus jazigos. Acho brega e
prepotente.
Meu pai faleceu no dia
02/11/1998. Todo ano meu pai me levava ao cemitério no feriado de Finados, era
um feriado sagrado para ele. O túmulo da família dele fica no cemitério São
Paulo, que é um deste cemitério de pedra feios que existem espalhados por aqui. Na entrada, temos os túmulos das pessoas mais
importantes, com seus pequenos templos de gesso feito por artistas talentosos,
mas de mau gosto. O túmulo da família do meu fica um pouco depois do centro do
cemitério. Você sobre, entra a esquerda num corredor que não sei se tem nome,
em dado momento entra à direita, sobre mais um pouco, e chega. Fica ao lado de
uma pia, que sempre foi o meu ponto de referência naquele labirinto.
Eu tinha 14 anos quando meu pai
morreu de câncer, o que quer dizer que ele esteve doente basicamente em todo
período que convivemos neste planeta. Eu era completamente adaptado ao fato de
ter um pai doente e achava totalmente normais as idas e vindas do hospital. Não
sei se toda pessoa é assim antes de perder alguma pessoa próxima que ama, mas
eu achava completamente impossível que meu pai morresse. Mesmo com câncer, esta
ideia nunca tinha me passado pela cabeça. Coisas claras indicando que ele
estava partindo aconteciam sem que eu me ligasse disso. 02/11/1998 foi uma
segunda-feira e na sexta-feira todas as irmãs dele que moravam no interior
vieram visitá-lo. No sábado ele foi para o hospital e no domingo um tio me
levou para aquela que seria minha última visita a ele. Meu pai ainda não havia
sido sedado e nossa última conversa foi sobre o jogo Vitória 2x3 Corinthians
pelo Campeonato Brasileiro de 1998. Às vezes eu acho que sou a única pessoa no
mundo que lembra que este jogo existiu.
Meu pai era corintiano fanático.
Em 1977, por exemplo, ele simplesmente não conseguiu assistir ao terceiro e
decisivo jogo da final contra a Ponte Preta. Trancou-se no cinema e se isolou
do mundo numa sessão do filme O Inferno na Torre. Ele faz parte daquela geração
que chamo de corintianos azarados. Até 1998, o Corinthians era basicamente uma
porcaria. Era campeão de vez em nunca. A juventude dele foi vivida nos 23 anos
de fila. Foi neste ano que o Corinthians ganhou o segundo título brasileiro, já
sem ele vendo. De lá para cá, o Corinthians ganhou tudo. Penso nele cada vez
que o Corinthians ganha algo, aliás.
A grande marca deste Vitória 2x3
Corinthians pelo Campeonato Brasileiro de 1998 é que o segundo tempo foi até os
60 minutos. Não lembro por quê, só lembro que foi até os 60 minutos porque esta
foi a última coisa que disse a meu pai. Ele acordou, sorriu, perguntou quanto
tinha sido o jogo, eu respondi “3x2, e o segundo tempo foi até os 60 minutos” e
ele voltou a dormir. Ele já estava respirando por aparelhos, mas isto não foi o
suficiente para me tirar da bolha. Eu só percebi que meu pai estava morrendo
quando encontrei a minha irmã no mesmo dia. Ela tinha ido viajar com a equipe
de basquete da universidade e voltou ao saber o que estava acontecendo. Assim
que ela voltou, olhei nos olhos dela e a abracei, e neste abraço minha ficha
caiu. Fui com ela ao hospital e bateu o desespero quando soube que meu já
estava sedado e não acordaria mais. Um dos motivos deste desespero era ter que
conviver com o fato de que minhas últimas palavras a ele não seriam “eu te
amo”, mas “o jogo foi até os 60 minutos do segundo tempo”.
Minha relação com a morte foi
totalmente moldada por este evento. Se antes eu achava que ninguém do meu mundo
iria morrer, a partir daquele momento eu passei a achar que elas iam morrer a
qualquer momento. Na semana passada, por exemplo, liguei para minha irmã e ela
me respondeu que tinha ido dar uma volta de bicicleta, que me ligava na volta.
Eram 18:00 e ela me ligou às 20:00. Eu passei estas duas horas com o telefone
em cima da perna. Deixei de morar com a minha mãe há 5 anos e pelo menos uma
vez a cada seis meses eu faço uma visita surpresa porque ela não atendeu ao
telefone. Uma característica minha, por exemplo, é que muito raramente uma
briga comigo dura mais de um dia. Para que eu não peça desculpas, mesmo estando
certo, é necessário que o assunto seja muito importante e que eu esteja muito
certo. E política é um destes assuntos importantes, para deixar claro. No
momento atual, em que somos governados por um genocida lunático cercado de um
grupo de fanático, não apenas se pode como se deve brigar por política. É um
dever moral. Se estas duas características não estiverem presentes na briga, eu
peço desculpas em umas duas horas, mesmo estando certo. Não há nada pior,
aliás, do que quando peço desculpas para uma pessoa, mesmo sabendo que eu
estava certo, e esta pessoa não as aceita.
Quando eu ia ao cemitério com meu
pai no dia de Finados, uma das coisas que me fascinava naquele labirinto de pedras
era ver as plaquinhas dos mortos, especialmente quando aparecia alguém que
tinha nascido em mil oitocentos e bolinhas. Achava fascinante que pudesse ter
havido vida cem anos antes de eu nascer. E começava a achar fascinante que
haveria vida cem anos depois de eu nascer. Eu sempre tive noção de que ia
morrer, apesar de achar que meu pai nunca morreria. Foi no dia 02/11/1998 que
eu passei a ser confrontado com o dia 07/05/2024. Meu pai morreu de câncer de
próstata, meu avô morreu de câncer de próstata e, a partir deste dia, o
conselho que mais recebi na vida foi: “Não se esqueça que você precisa começar
a fazer os exames aos 40 anos”. Achava este conselho uma bobagem quando tinha
14 anos. Agora tenho 36. Quando eu tinha 14, parecia que o dia em que eu teria
40 estava muito longe. Me aproximo dos 40 e agora acho que o dia em que eu
tinha 14 está tão perto.
Cada uma daquelas plaquinhas tem
uma vida repleta de acasos. Sou do tipo que acha que é ele que rege nossas
vidas, antes mesmo de nascermos. Por exemplo, um dos grandes acasos da minha
vida aconteceu trinta anos antes de eu nascer, quando meu pai ganhou na loteria.
Não era o prêmio de loteria de hoje, claro, mas garantiu uma série de regalias
a ele e boa parte dos privilégios da minha vida. Com este dinheiro, meu pai
comprou uma casa no Cambuci, para a qual eu, minha mãe e minha irmã nos mudamos
nos anos 1990 e que vendemos em 2011, comprando o apartamento em que minha mãe
mora. Parece simples, mas demorei muito tempo para perceber o papel da sorte e
do privilégio na minha vida. Defendia com unhas e dentes a meritocracia,
gostava de pensar que tinha “direito” as coisas que tenho porque trabalhei
muito por elas. Bobagem gigantesca. Boa parte delas veio por um golpe de sorte.
Meu pai tinha duas famílias. Não
vou entrar no mérito de como isto aconteceu, mas entre estas duas famílias
rolou aquela briga quase clichê que acontece quando alguém nesta situação
morre. Para quem gosta de brincar com o acaso, como eu, esta briga foi
determinada lá em algum ano dos 1950, quando cinco bolinhas determinaram o
futuro de um ser que nasceria em 1984. Uns dez anos depois da morte do meu pai,
eu percebi que ele tinha sido um filho da puta na história. Lembrem-se que
claramente sou uma pessoa que demora muito para perceber as coisas. Descobri
isto convivendo com uma pessoa que tinha vivido uma situação inversa à minha.
Eu sou fruto da segunda família e esta pessoa era da primeira. Até aquele dia,
eu nunca tinha me posto no lugar da família que tinha sido enganada. Foi uma
merda de período que durou uns dois anos. Passou numa conversa aleatória. Nunca
toquei neste assunto com ninguém, até um dia em que numa viagem de carro com
minha irmã resolvi mencionar algo do tipo com a minha irmã. Perguntei, sem usar
estes termos, claro, se ela não achava que meu pai tinha sido um filho da puta
na história. A resposta da minha irmã foi: “Não vale a pena pensar nisso”. Foi
libertador. Nem sempre vale a pena pensar nas coisas, afinal. Se meu pai foi um
filho da puta, ele pagou por isto tendo filhos que se odeiam e que entram em
guerra por causa de imóveis. Deve ser a pior sensação do mundo.
Na época em que meu pai morreu,
eu era viciado em comprar CDs. Era minha paixão, usava todo meu dinheiro nisto.
Na semana de 02/11/1998, comprei dois CDs. Uma coletânea dos Ramones e um CD
especial que o U2 lançou exatamente naquele dia. Era uma coletânea com as
músicas deles dos anos 1980, com numeração especial. Meu pai faleceu na noite
de 01 para 02/11 e minha irmã resolveu me levar neste lançamento como primeira
tentativa de tocar a vida. Foi uma enorme bobagem. Eu nunca consegui ouvir
estes dois CDs direito na vida e passei a relacioná-los diretamente ao evento
da morte do meu pai. Em 2018, resolvi me livrar destes CDs. Isto aconteceu
assistindo ao programa Gol, o Grande Momento do Futebol. Eu sempre saía aos
domingos, gostava de curtir a Paulista aos domingos. Naquele dia choveu e eu
estava de ressaca, resolvi ver TV. Bem naquele dia, por algum motivo X, a Bandeirantes
resolveu passar os gols daquele jogo. Fazia uns 15 anos que não chorava por
aquele assunto, e lá estava o Corinthians x Vitória de 1998 arrancando as
lágrimas de um assunto que eu julgava cicatrizado. Naquele momento, estava
decidido que ia me livrar dos CDs. Na segunda de manhã, atrasei no trabalho
porque passei num sebo do centro. Recebi R$ 5 pelos CDs. Comprei dois pães-de-queijo.
De certa forma, eu achava que manter aqueles CDs era uma obrigação, que eu
precisava me manter preso àquele momento, que precisava me punir por não ter
tido uma última conversa decente com meu pai. Me libertei. Senti que o acaso me
libertou. A chuva do domingo, o produtor do Gol, o Grande Momento passando
estes gols de um jogo que não significou nada para ninguém bem naquele dia, na
minha cabeça tudo aquilo foi um sinal. “Não vale a pena pensar nisso”.
Superar não é esquecer, é
aprender a conviver com as lembranças. Nunca vai cicatrizar. Toda vez que o
Vitória é rebaixado no Campeonato Brasileiro sinto um enorme alívio. Um ano sem
o jogo. Mas por mais que venda os CDs no sebo, o 02/11/1998 estará sempre na
minha vida. Como o sentimento triste no dia dos pais. E seguirá sendo assim, para o bem e para o mal. Saber que a pessoa
que amamos não era perfeita, mas que isto não é motivo para deixarmos de
amá-las. Saber que cada plaquinha do cemitério de pedra ainda vive em alguém e
que daqui a cem anos eu viverei em alguém. A vida é um ciclo regido pelo acaso.
Um ciclo de aprendizado e de traumas. Vivemos a maior tragédia coletiva da
nossa geração, com mais de 100 mil mortos de Covid nos últimos cinco meses e
com mil pessoas morrendo por dia. Enquanto há um esforço para naturalizar a
tragédia, para seguir a vida como se isto fosse uma “gripezinha”, só consigo pensar
no meu pai. Colocar-se no lugar do outro é uma forma de entender a dor. A minha
dor é a dor do outro. A dor do outro é a minha.